quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Leonardo e Meredite (Parte 4)

     Nascia a sexta noite do festival. Portanto, a sexta noite em que Leonardo e seus amigos expunham suas artes. Ele, tinha suas telas, Alesandro participava com uma grande escultura em mármore, Will declamava seus poemas e Marco, tenor, apresentava árias compostas por ele mesmo. Tiveram seus passos unidos a muito tempo. Eram o resto do meio termo daquela era, um implante indefinível naquela sociedade. Mas sonhavam com construções astrais, de longo prazo. Não queriam colher. Só sabiam semear. Eram estranhos, meio burgueses, meio falidos. Mas se entendiam. Se amavam talvez mais pelos erros do que pelas perfeições. Naquele ano estavam com ares de completos, haviam reunido todas as suas economias e estavam ali, onde a arte não só aparecia, ela acontecia.

     Quem diria que na última hora conseguiriam alugar conjuntamente uma pequena, mas deslumbrante galeria que lhes atendia completamente. Era ali que estavam, tão felizes quanto pensativos. Cada um a seu modo. Cada um por seus motivos.

     O espaço era conhecido, eles não. Tal evidência acarretava em muitas visitas ao local, mas curta permanência das pessoas diante das obras e artistas. Leonardo era o que se mostrava mais incomodado com a situação. Embora amigos leais, cada um tinha um temperamento: Alesandro prometia reproduzir em suas esculturas toda dama mais graciosa que lhe sorria. Will, ao recitar suas poesias, se confundia com os personagens e nem ligava se o público o aplaudia ou chicoteava. Marco interpretava uma ária ao mesmo tempo em que seu coração habilmente já compunha outra. Leonardo, porém, a muito esquecera como era aquilo, que, para ele, era dor. Esquecera, porque, não expunha a muitos anos. Mas agora voltava a sentir o peso de acompanhar o olhar de um ou outro visitante que revistava toda extensão de suas telas e depois saía, rapidamente, parecendo não ter entendido nada. Mas Leonardo não era o peito oco que ultimamente ele parecia ter prazer em afirmar. Ele se emocionava secretamente quando alguém parecia ter se permitido uma troca, uma comunicação com uma de suas criações. Foi um desses oásis que fez evaporar todas as nuvens turbulentas que estavam sobre o artista.

     Quando Meredite entrou naquela galeria, já confessava para si mesma que seus pés talvez não contassem com o mesmo vigor de seu interesse por tantos espaços e apresentações. Era incrível como as atrações eram sem conta. A cada dia novas artes e platéias chegavam. E ela se encontrava também fascinada com a intensa e variada oferta de doces do lugar. Sabia estar cometendo uma gafe ao entrar em um templo artístico já degustando algo. Mas foi um tanto inevitável. Acabara de comprar um pedaço de torta e foi enfeitiçada por uma ária que ela desconhecia, mas que mesmo assim soou doce ao seu coração. Já no interior da galeria, passou por dois pequenos pavilhões até alcançar o espaço de onde vinha o som.

     Apreciou a humildade do cantor que, mesmo acompanhado por sutil platéia, se apresentava com clara devoção. Ficou ali por um bom tempo e depois se retirou para a última sala.

     Tal ambiente era o mais escurecido de todos. Contava com apenas duas pequenas mas bem distribuídas luzes, cada uma visando iluminar sem ofuscar ou danificar as duas telas que ali habitavam. Diante de cada tela havia um amplo banco acolchoado. Todos os dois se encontravam vazios. Ela olhou o breu que dominava a maior parte da área e não avistou ninguém, nem mais nada. Resolveu então ir até a primeira obra, que retratava uma floresta, se sentou normalmente no banco e deixou que sua alma fosse capturada pelo enlevo que a chamava. Pensou, lembrou e sonhou com muitas coisas, e em todas reconhecia também ela mesma. Parou a contemplação, olhou novamente ao redor e entendeu que ainda estava sozinha. Como nenhum estabelecimento durante o festival tinha horário para fechar, ela sabia que não corria o risco de terminar aquela aventura trancada no salão. Estranhou a presença quase nula de visitantes naquela galeria, refletia que os artistas deviam se encontrar meio desapontados diante desse fato. E com alguma tristeza notou que ela estava sendo um pouco egoísta... Porque ela estava se sentindo especial, segura, em paz. E conforme até as notas das canções do tenor pareciam ir ficando distantes de seu íntimo, as imagens pareciam refletir sua essência.

     - Parece que eu sempre estive aqui, dentro dessas obras! - falou para si mesma.

     A artesã então, se vendo oculta, na solidão do recinto, sentou no banco, com as costas voltadas para a tela, em seguida deitou e deixou que seu pescoço se dobrasse, de maneira que pudesse visualizar a criação sob um novo ângulo. Depois de alguns minutos, se levantou, foi até a outra pintura e repetiu toda a atenção que dedicara à primeira.

     Quando voltou a se colocar de pé e se encaminhava para a saída da sala, se sobressaltou com a atitude de Leonardo que a observava do lado de fora do ambiente, na outra sala totalmente iluminada. A postura dele não inspirava à primeira vista nada melhor do que essa sensação de alerta por parte de Meredite, pois ele parecia um animal defendendo seu território e não um artista ansioso por apreciadores de sua arte. Mesmo assim, ela continuou se aproximando dele calmamente, e, de repente, a luz principal da sala que abrigava as telas foi acesa. Ele a interceptou no meio do caminho e, para surpresa da forasteira, quando ele falou soou tranquilo e curioso:

     - Oi! Desculpe se minha presença lhe causou alguma desconfiança. Acredito que já posso lhe cumprimentar lhe desejando um bom dia!

     Ao perceber que Meredite continuava em silêncio, ele continuou:

     - Eu já estava esquecendo de me apresentar... Sou Leonardo, o autor das obras.

     Então a artesã reagiu de uma maneira inesperada por ele... O aplaudiu. E ao gesto acrescentou os dizeres:

     - Olá! Bom dia! Eu é que peço que não considere a minha primeira reação ao perceber que você estava aqui! Parabéns pelas obras! Fico muito honrada em conhecê-lo.

     Leonardo acompanhou cavalheirescamente a mansa reverência que ela lhe concedeu e aproveitou para perguntar com qual das obras ela havia se identificado mais:

     Automaticamente começaram a retornar ao salão das pinturas e se posicionaram próximos às duas criações. Permaneceram em silêncio enquanto ele observava o desfilar dos olhos dela de uma tela à outra.

     - Com as duas! - ela respondeu e se voltou para ele.

     - Sua resposta é indecisa e misteriosa. Será que você poderia justificar o apreço por cada uma?

     - Uma está na outra. E ambas fazem parte de mim. Acredito que você me pintou sem me conhecer...

     Eles se sentaram no mesmo banco e ela ainda esclareceu:

     - Esse lago está no interior de uma caverna nessa floresta. Só um desbravador pode alcançá-lo. Está tão resguardado do Sol, tão abaixo da superfície e é um ambiente grandioso, propício para a restauração da vida que dorme sob esse gelo. Você retratou a mata de hoje e o lago de amanhã, cujo gelo que o rodeia lentamente derreterá e revelará novamente todas as árvores originais da região.

     Ele se mostrava realmente interessado na meditação que ela compartilhava. E ela seguia com seu discurso:

     - Todos nós somos esse verde. Esplendorosos, mas temendo desaparecer. Mas precisamos saber que mesmo quando nos tornamos gelo... Temos sob a superfície uma reserva puríssima que emerge quando nasce o nosso Sol particular.

     Ela terminou e percebeu que ele havia se retirado rapidamente de perto dela e se mantinha de costas. Ela então se aproximou e mantendo certa distância falou:

     - Sinto muito se disse alguma ignorância. Se interpretei seus traços de maneira inconsequente. Eu expressei o que minha alma viu.

     Então ele se voltou, aproximou-se e olhou diretamente em seus olhos:

     - Sua alma, senhorita, viu a minha!

     Pegou a mão direita dela sustentando-a por um minuto diante de seus olhos e em seguida a beijou. Ela se sentiu uma princesa, pois plebéias não costumavam ter suas mãos saudadas com tanta cortesia. Um silêncio delicado abençoou a despedida. Ela caminhou normalmente até a saída da galeria e ao ganhar a rua começava a aumentar a velocidade de seus passos, quando um pouco longe, mas ainda em condições de se fazer audível, ele a chamou:

     - Ei, moça, vidente... Qual é o seu nome?

     - Meredite! - respondeu acenando matreiramente, deixando que as pedras de seu colar e pulseira sacudissem exibindo ainda mais liberdade e beleza.

     - Só mais uma coisa... Até quando você ficará?

     - Até o fim!!!

     - E se não houver fim?

     - Então, para sempre! E você?

     - Eu também!

     Então ela partiu rumo à sua pousada e ele voltou para a galeria indo ao encontro dos seus amigos.


Janeiro de 2021
Ana Luiza Lettiere Corrêa (Ana Lettiere)

Com Patrícia Lettiere ( http://pintandonopedaco.blogspot.com.br ), Paulo Renato Lettiere Corrêa ( http://osabordamente.blogspot.com.br ) e todos os meus inspiradores.

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