segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Leonardo e Meredite (Parte 1)

     Sobre o livro: A grande musa inspiradora desse escrito é a minha irmã, Patrícia Lettiere (Patricia Carla Lettiere Corrêa). Ela é a Meredite!

     Em algum local, séculos atrás...

     Meredite tinha 20 anos e já era uma talentosa e singela alquimista de amuletos. Embora ainda fosse desconhecida por grande parcela da sociedade da época, aqueles que já tiveram a boa fortuna de cruzar ou compartilhar caminhos e segredos com ela, e de suas mãos receber uma de suas formas de demonstrar amizade (Através de uma de suas jóias delicada e manualmente confeccionadas de maneira especial e carinhosa) confirmava, garantia, que seu lar, sua vida e até seus mais íntimos sonhos e profundos ideais ganharam mais sentido, vigor e beleza a partir de tal ocasião.

     As jóias produzidas por ela eram sempre únicas, trabalhadas com materiais simples, brutos, mas que, escolhidos por sua alma para florescer e libertar o espírito do presenteado, se transformavam em peças dignas da mais alta nobreza. Eram de fato criações espetaculares, que ela nunca vendia. Costumava dizer que eram parte dela e que de tal forma só poderiam ser ofertadas.

     Dessa maneira se mantinha uma aura selvagem, mesmo que morasse em um vilarejo. Sua rua quase solitária, cercada por árvores sempre verdes e acolhedoras abençoava sua minúscula choupana. Era ali, naquele espaço que ela dava vida às suas jóias e preparava os fabulosos doces que seu gênio gentil era fértil inspirador... Esses sim, ela vendia. Colocava em uma cesta e saía oferecendo não somente aos daquela terra mas igualmente nos povoados vizinhos. Por tais dons, mesmo apreciando um cotidiano meditativo, silencioso, era vista como uma fada.

     Não detinha uma relação de posse para com nenhum animal, porém era amiga, próxima, de todos os seres, de toda manifestação da natureza... Incluindo uma de suas filhas mais rebeldes, a Arte! Nossa! Desde que ela lembrava de ter regressado a esse mundo, tudo que via e buscava era essa coisa, essa força soberana, o "in": incorruptível, insubstituível, incontestável! E quando a encontrava se emocionava, se rendia completamente. Aquela troca entre criação, criatura e criador era o que a tornava verdadeiramente poderosa. Idolatrava acima de tudo a pintura.

     No entanto tais momentos eram por demais espaçados em sua jornada. Muitas exposições aconteciam em locais distantes ou o ingresso para tais eventos ultrapassavam suas condições. Até que chegou um dia se fazendo convite e desafio para suas aspirações contemplativas. Ela estava no interior do reino e a proclamação lhe veio em forma de sussurro. Diziam que todas as artes do continente se expressariam no centro cultural da pátria, fazendo deste novamente um marco. Comentavam que meteoro semelhante não brilhara nos últimos duzentos anos nem tornaria a riscar aqueles firmamentos em próximos duzentos. Artistas, influentes, ou principiantes e admiradores das virtudes estariam todos ali. Sensacionalismo ou não, o fato é que a promessa de tal epopéia tocou em sua essência. E ela jurou. Fez isso para si mesma. Iria! Não para se apresentar, mas para sentir toda a poesia daqueles ventos! O percurso até o local era longo, e, em alguns trechos, pesado. Mas nada a desanimaria. Já tinha todo o plano em seu ser.

     O comércio de seus doces havia lhe garantido uma reserva, pequena, mas que seria útil para o caso de surgir alguma emergência. Iria caminhando, para economizá-la ao máximo. Vários dias de peregrinação para encontrar as cores, letras, sons e formas, respostas para muitas de suas vidas.

     Leonardo já contava com 39 anos. Bem vividos? Para ele a certeza. Na opinião de seus pares sua vida era uma montanha sinuosa ao extremo. Seu livro, linhas caprichosas e teimosas, repletas de borrões. Acreditavam que o empenho dele para com sua "Doce princesa" como ele chamava devotamente a arte plástica que produzia grátis e freneticamente, era pueril, catastrófico. O pouco que recebia às vezes como pagamento por uma de suas obras gastava rapidamente adquirindo mais material para criar novos cenários. Recebia pouco porque vendia pouco e venderia nada se pudesse se conceder esse luxo. Ele não gostava de ver as telas indo embora. E mesmo as que concordava em comercializar eram somente obras que ele já criara. Jamais aceitava encomendas. Embora respeitasse os artistas que trabalhavam dessa forma, se permitiu o deleite de só retratar o que amasse, febril e voluntariamente. Seus amigos não mais sabiam se deviam admirá-lo ou odiá-lo por sua falta de ambições. Ele era desejado pelas marquesas mas só dançava com camponesas. Era cercado por alvuras que lhe imploravam para tingi-las em suas telas. E ele sempre recusava. Por isso perdeu paixões. Em outro episódio negou a oferta de um rei que queria ver-se espelhado em uma de suas criações. O monarca tinha ido pessoalmente até ele, sem aviso, em uma taverna onde o artista se encontrava bebendo. Leonardo se ofendeu com a insistência do homem e do apelo monetário que crescia. Além disso se incomodou com a algazarra que os demais frequentadores do local estavam fazendo, insistindo, unindo forças para que o pintor abrisse mão de sua ideologia. Perdeu totalmente o senso de cordialidade e respeito à hierarquia quando o rei pegou um rubi de raro valor e colocou em um de seus bolsos sem seu consentimento dizendo que aquilo era apenas para alimentar sua inspiração. O artista rapidamente pegou o rubi e o arremessou pela janela do estabelecimento, causando na população uma caça à preciosidade. O rei simplesmente cuspiu em seu rosto e o chamou de besta. E assim Leonardo perdeu ouro, virou piada e inimigo de alguns e herói para outros.

     As tavernas eram isso mesmo, muita briga e pouca conversa. Mas presenciar a discussão entre um rei e um desconhecido era algo com toque de fenômeno. Depois do acontecido, independentemente de quem tenha arrecadado mais louros das testemunhas da desavença, os dois, rei e pintor, abdicaram de comparecer ao ambiente. Depois de uns bons tempos e somente por intervenção quase desesperada de seus amigos, é que o artista voltou. E foi justamente nessa ocasião que ele ficou sabendo a reunião de obras e inspirados que aconteceria a muitas léguas e semanas distantes dali. E ele decidiu. Iria. Expôr, pela primeira vez depois de muitos anos. Além disso, já estava decidido, ia ficar, naquela sede dos dons, pra sempre. Sabia que o seu destino estaria ali. Pensamento que desnorteava não somente aos seus companheiros mas principalmente a ele próprio. Era um cidadão viajado e passara por aquele lugar uma boa dezena de vezes durante sua vida e nunca sentira igual atração, mesmo respirando seus ares. Mas havia algo acontecendo exatamente naquele momento que fazia todas as suas visitas anteriores parecerem simples e brancas lacunas.


Janeiro de 2021

Ana Lettiere (Ana Luiza Lettiere Corrêa)


Com Patrícia Lettiere ( http://pintandonopedaco.blogspot.com.br ), Paulo Lettiere ( http://osabordamente.blogspot.com.br ) e todos os meus inspiradores.

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