domingo, 24 de janeiro de 2021

Leonardo e Meredite (Parte 22 * Final)

     Leonardo se pronunciou contendo a risada que o jeito "alto" do amigo queria lhe despertar. Era evidente que o companheiro já havia ingerido mais doses de vinho do que o usualmente esperado para um período anterior à uma cerimônia de casamento. Algumas pessoas ao redor, porém, não se contiveram tanto e riam baixo. O artista respondeu:

     - Tenha calma! O tempo é nosso amigo e te afianço de que estamos todos bem e aqui!

     Fez uma pausa, sorriu matreiramente e continuou:

     - Meus caríssimos iguais, meus convidados. Sabem... Absolutamente nada na minha vida aconteceu de uma maneira normal. E não havia um porquê para meu casamento ser.

     Olhou para Meredite:

     - Amiga... Minha noiva está muito calada, debaixo desse véu... - apontou para o cavalete.

     - Você acha que ela vai me aceitar como esposo amantíssimo, perdoar, saber lidar com todos os meus defeitos, me iluminar em todos os momentos e além disso permitir que eu a ame diante de todos os horizontes, sejam eles azuis ou cinzas, sendo para toda eternidade a musa e dona desse coração?

     A artesã refletiu. Ela estava com as mãos suando:

     - Léo, eu não estou compreendendo.

     - Você é sensível! Apenas diga se eu sou compatível com alguém puro de espírito como ela é.

     - É claro que sim! Você é um homem de grande honra! Você merece todo amor e muita felicidade!

     Meredite disse essas palavras sentindo as forças de seus sentimentos por Leonardo a sacudirem. Terminou a frase com os olhos marejados levemente. Ela não queria deixar aquelas lágrimas de afeição rolarem, para que tal não soasse como despeito diante do enlace do pintor. A verdade, ela sabia, mas não podia deixar crescer, aquela ponta de tristeza por não ser ela a estar se casando com seu amado. Ela tinha que permanecer forte e ser boa como sempre fôra. Precisava ser claridade no caminho daquele casal. Então, se controlou.

     - Já posso erguer o véu! - assentiu o artista.

     Leonardo segurou as pontas do pano deixando que o tecido caísse graciosamente para trás do cavalete, revelando a pintura.

     Todos se movimentaram para observar melhor, e as tintas que viram desfilar mostravam a jovem artesã, sentada ali mesmo entre as flores daquele campo onde predominavam as flores alaranjadas. Um lindo vestido rosa mostrava suas mangas delicadas, esvoaçando junto com a fita branca presa em laço a seu grande e feminino chapéu de palha. Ao fundo, variados pássaros buscavam seu destino sob o céu e outros descansavam sob o Sol. Inúmeros verdes, azuis, amarelos, rosas... E o centro... O centro daquele Universo... O Universo que o reensinara a viver era ela... Meredite!

     Todos deveriam estar estupefatos, porém, passada a expectativa inicial, depois dos primeiros murmúrios surpresos, os entreolhares dispensaram questionamentos e revelações. Estava tudo ali. Tudo certo como água nascente.

     Leonardo tocou de leve a mão de Meredite e com a outra mão ergueu tranquilamente seu rosto, segurando seu queixo com brandura. Seus olhos se encontraram e ela deixou que suas lágrimas, agora plenas de alegria rolassem por sua face até tocar os dedos dele.

     - Você reafirma? Me quer? Me deixa cuidar de você?

     - Pra sempre!

     O artista deixou que um dos expectadores retirasse o quadro do caramanchão para que a cerimônia, com a artesã ali, pudesse transcorrer com mais espaço. Enquanto isso, Leonardo, se dirigindo aos amigos mais próximos falou:

     - Eu nunca escondi que a minha amada é uma verdadeira obra de arte!

     Em seguida, conduziu sua noiva a fim de que se colocassem voltados ao altar. Uma menina de aproximadamente meia década de existência se aproximou da mesa e ali depositou um lindo buquê branco, azul e amarelo, um presente único da natureza, pois, apenas a parte alva era vegetal, repolhudos dentes-de-leão, as cores solar e turquesa que também o compunham, na verdade, eram borboletas que haviam se unido ao místico ramalhete, bela e voluntariamente. O balançar causado naquelas flores pela brisa e delicado movimentar de dúzias de pares de asas fazia daquele momento uma poesia divina. A presença de uma música suave com acordes doces de violino e acordeon beijava os ouvidos de todos, que, mesmo assim puderam escutar nitidamente quando o homem mais vivido pronunciou:

     - Querer Bem é aceitar, apoiar, sorrir, chorar, ir e esperar. O amor nos foi ofertado pelos deuses para reconhecermos nele algo como o suco de nossas uvas. Cada gota é uma, é insubstituível, é um ser. Cada casal transborda então uma alquimia perfeita e sem igual no Universo. Dito isso... Ambos sabendo que já fundiram a essência de seus sentimentos maiores, aceitam eternizar essa magia, defendê-la e expressá-la em seus olhos e atitudes, no silêncio ou diante de um mundo?

     - Sim!!! – Leonardo e Meredite responderam simultaneamente.

     Então a menina e o menino que ali estiveram durante toda a cerimônia também participaram do ritual, ela pegou uma pétala do ramalhete que representava o outono e também uma pétala que representava o verão e o menino retirou uma pétala representante da primavera e outra que simbolizava o inverno e juntos colocaram dentro do cálice enquanto falavam em uníssono:

     - Que assim seja durante todas as faces das terras!

     O casal mais maduro entrelaçou suas mãos e em seguida segurou em conjunto o recipiente que continha suco de uva. Enquanto preenchiam a taça com o líquido falaram juntos:

     - Que exista sempre mais sabor, cor, refresco e afeto em seus caminhos! Que sejam felizes! É o que basta e reina!

     O suco parou de cair sobre as pétalas quando as palavras cessaram. A anciã ergueu o cálice e em seguida ofereceu ao casal. Ambos sustentaram o receptáculo e sorveram a bebida ao mesmo tempo enquanto a dupla mais experiente e a mais jovem declaravam:

     - Estão unidos perante o Universo. Os deuses os aprovam e os amam. Benditas continuem vossas vidas e que suas sementes vivam e cintilem!

     Todos sorriram naquele ambiente... Era claríssimo como todas as fontes de pureza estavam plenas. Leonardo então abriu as duas pequenas caixas. Uma delas guardava a pulseira confeccionada com o rubi. Era linda, Meredite havia superado todas as expectativas... A gema flutuava em um trançado deslumbrante branco rosado. A segunda caixa revelou também uma jóia encantadora. Um radiante fio vermelho abraçava um arredondado quartzo rosa que parecia um coração. A artesã o observou e o pintor vislumbrou a pergunta quieta que desfilava no semblante da artista.

     - Tamara criou! A meu pedido e com toda dedicação ela lhe preparou esse mimo fundamental para nossos votos. - ele sussurrou.

     Meredite lançou um olhar para sua amiga e sorrindo lhe transmitiu, com seu jeito único, todo seu agradecimento e congratulações pela espetacular obra.

     A música aumentou levemente seu tom enquanto eles vestiam as pulseiras um no outro e trocavam mais e secretos votos de amor. Passado esse momento, os recém-casados deram seu primeiro beijo diante de seus convidados. Um misto de aplausos, vivas e elogios se fez ouvir naquele nobre recanto.

     Passados mais alguns instantes, as moças que almejavam também se casar formaram uma espécie de público diante de Meredite. Naquela região era costume se fazer tal coisa, as mulheres casadouras cercavam uma recém-casada na espera de receber presentes ou/e conselhos. A artesã distribuiu cristais para as damas e recomendou que sempre fossem elas mesmas, diante de qualquer situação. E então, depois, lançou um caloroso beijo em direção a todas e soprou docemente o buquê que mais cedo tinha sido depositado perto dela, no altar. As borboletas voaram, e, como ensaiadas, cada uma delas pousou no ombro de uma mulher. As moças, felizes com o resultado daquele evento começaram a se dirigir aos espaços para descanso e refeição. Todos tinham a liberdade para se servir das guloseimas expostas.

     A música assumiu de vez o seu lugar naquela confraternização, o ambiente dançava naturalmente, casais rodopiavam, cavalheiros sustentavam os movimentos de suas bailarinas. Um rio de felicidade fluía e definia seus envolventes cursos. Leonardo e a artesã encontraram seu primeiro bailar rumo à vida a dois, uma animada valsa. A seguir, se lançaram à vigorosos acordes camponeses.

     E com certeza, os recém-casados, assim como todos ali presentes não conseguiram evitar se encantar ao perceber que o rei tinha se postado hábil e enamoradamente como companhia da moça que havia ornado sua fronte com flores. Aquelas horas já previam o que os aldeões, e, quem sabe, até mesmo o monarca, desconheciam... A futura rainha estava ali, era ela... Escolhida no coração da sociedade, eleita por seu saber e humildade. E que ele seria um soberano ainda mais autêntico por se casar por amor.

     A noite chegou, a iluminação foi primorosamente realizada... Além das tochas engenhosamente colocadas, a lua e inúmeras estrelas ilustravam o lugar.

     A artesã e seu amado, depois de receberem os cumprimentos, conversarem com todos e os fazer se sentir à vontade, se afastaram e ficaram olhando o perfil das montanhas. Se abraçaram e beijaram demoradamente. Estavam juntos, eram o futuro... Ele e sua Meredite, então oficialmente, di Leon.

 

Janeiro de 2021

Ana Luiza Lettiere Corrêa (Ana Lettiere)

 

Com Patrícia Lettiere ( http://pintandonopedaco.blogspot.com.br ), Paulo Renato Lettiere Corrêa ( http://osabordamente.blogspot.com.br ) e todos os meus inspiradores.

Leonardo e Meredite (Parte 21)

     O ambiente exibia o auge de sua florada. As folhas e pétalas se mostravam resplandecentes. Os delicados caules estavam vivazes e flexíveis, e sua altura parecia ter sido cuidadosamente combinada para a finalidade da celebração... Formava um tapete uniforme que permitia que os convidados, mesmo quando sentados nas pequenas almofadas que estavam postadas diretamente sobre o chão cercando os véus colocados também de forma direta sobre o solo à moda "toalha de piquenique", conseguissem acompanhar a cerimônia e interagir com os outros presentes na festa.

     Cada véu reservava a companhia de oito almofadas e ficava diante de um pequeno caramanchão que tinha sido construído especialmente para o casamento e se encontrava completamente ornamentado com flores. Sob esse espaço havia somente uma pequena mesa coberta com uma cintilante e branca toalha de renda encimada por uma jarra e uma taça de prata, além de um singelo buquê confeccionado com flores locais adicionado um em cada canto da mesa. Cada ramalhete tinha uma determinada flor. Cada flor com uma cor. Cada cor representando uma fase do ano...Vermelha, verão. Rosa, primavera. Amarela, outono. Azul, inverno.

     Diante dessa espécie de altar estava posicionado, no lado dedicado à noiva, um cavalete coberto com cetim verde e um trabalhado tule branco.

     Ao lado dessa construção, uma única e longa mesa presenteada com uma coberta de veludo branco acompanhado de organza rosa se mostrava completamente guarnecida de variados recipientes que disponibilizavam inúmeras iguarias. Todo o conjunto era constituído em refinada porcelana com tema florestal e pastel, assim como os pratos também ali oferecidos para que os convivas fossem servidos no momento da confraternização. Ali também estavam as taças de cristal e talheres de prata.

     Por mais que a mesa já mostrasse delícias em grande número, um outro recinto recentemente erguido um pouco distante do caramanchão era reservado aos ajudantes na arte de fazer e servir os quitutes, e, a julgar pelo perfume das maravilhas que liberava, deixava evidente que as surpresas gastronômicas podiam ser aguardadas em profusão.

     Leonardo guiou todos até bem perto do altar e então pediu que sentassem nas almofadas. O que foi seguido pelos presentes com prontidão... Estavam encantados com a locação. Todo capricho, cada detalhe, era coisa de sonho... Eles viam, sentiam, e gesticulavam, e falavam uns com os outros, com emoção e alegria. O artista estava realizado com a situação, assumiu seu lugar ao lado do cavalete, de frente para todos, em seguida, o homem e a mulher mais honrados e idosos e o menino e a menina mais jovens e criativos da vila se posicionaram atrás da mesa da celebração, bem próximos ao pintor, que sorriu e falou:

     - Pronto, amigos! Agora só precisamos esperar que todos os convidados cheguem!

     Dois quartos de hora passaram a exemplo de dois pontos de luz própria que cruzaram o céu sobre as cabeças que ali se encontravam. O tempo não foi percebido, como aquelas estrelas não foram vistas, tão ansiosos estavam os corações e beijado pela onipotência do Sol o horizonte se fazia. Mas o tempo e aquelas luzes seguiam todos o mesmo destino e traziam bons dias para o reino.

     Uma hora de aguardo se fez e uma meia dúzia de vezes durante esse período, Leonardo fôra perguntado discretamente por alguns dos aldeões se a cerimônia ia demorar para ter início, situação que ele sempre contornava com uma resposta gentil e até mesmo humorada. Porém, em seu íntimo, ele sabia que seus planos dependiam também de uma pessoa para ter pleno sucesso. Ele estava ali, parado, mas seus pensamentos iam a todo instante até Meredite. Ela era sua amiga, precisava estar lá, e ele temia que a fortaleza dela ocultasse uma fragilidade que poderia eclodir na hora errada.

     Ela reagira bem quando ele insinuara amar outra. Mas ele sabia que ela tinha sentimentos puros e românticos por ele, coisa que poderia fazer ela não desejar ver pessoalmente seu enlace com outra mulher. No entanto, ele confiava na maturidade dela, tinha para si a certeza de que ela cumpriria sua promessa de comparecer ao evento.

     Foi isso que aconteceu. Quando Tamara e a artesã surgiram numa das bordas do campo, como se obedecendo um comando da existência, todos, sem exceção, souberam o que fazer, intuíram que a chegada de Meredite tinha algo muito profundo. Os aldeões silenciaram e os músicos começaram a executar uma melodia suave. As amigas seguiram juntas até um certo ponto. Foi então que a vendedora sutilmente ao se ver perto de uma almofada, deu um passo para o lado e se sentou. Meredite sabia que precisava fazer sua parte na cerimônia, então continuou caminhando de forma harmônica aos acordes. Ao se aproximar do caramanchão, viu Leonardo dar três passos em sua direção e recebê-la com um beijo na testa.

     Ela sorriu e lhe entregou uma pequena caixa dourada... Ele a recebeu e colocou sobre o altar, ao lado da taça. Em seguida, pegou outra caixa dourada que estava em seu colete e depositou ao lado da primeira, sobre a mesa. Feito isso, lançou uma piscadela para a artesã, segurou despretensiosamente uma das mãos da amiga e se voltou na direção de todos, conduzindo Meredite a fazer o mesmo. O aroma refrescante daquele ambiente livre compunha delicioso soneto em união com as ondas perfumadas dos chocolates e flores.

     - Tudo perfeito! Podemos começar! Primeiro, temos algo para o nosso príncipe... Por favor, Alteza, se aproxime! - Leonardo estava com o espírito realmente festivo.

     O soberano com uma postura fraterna, simpática por natureza e aguçada por conta daquela ocasião, fez o que o pintor solicitou, sem conseguir evitar porém um pouco da perplexidade causada pelo chamado do amigo. Tão logo o líder a modo de Meredite e Leonardo se voltou para a comunidade, uma camponesa e um camponês, saídos do lado oposto do caramanchão, se aproximaram do príncipe, um seguido do outro, parando ambos próximos a Eduardo. O camponês trazia em suas mãos a coroa real, repleta de rubis, destinada ao nobre por força de sua linhagem sanguínea. E carregado pela camponesa um tradicional arranjo silvestre, uma espécie de coroa confeccionada especialmente para também adornar o soberano. O pintor continuou:

     - Príncipe Eduardo... Aceita a partir de agora ser Rei desses castelos e terras e lutar contra todo tipo de tirania e ataques contra esse nosso lar?

     - Aceito e juro, esteja essa minha mão sobre o fogo ou esse coração diante de uma espada, que assim será. Defenderei a todos, empenhando minha própria vida. - respondeu mostrando-se firme e digno, mantendo a mão direita sobre o seu peito. Em seguida se ajoelhou, e, o camponês postou-se às suas costas erguendo ao máximo seus braços sustendo a coroa e depois lentamente a conduziu até repousá-la na cabeça do soberano, que nesse momento fechou seus olhos e pareceu concentrar-se em um tipo de prece. Foi então que o camponês se afastou discretamente, cedendo seu lugar à camponesa. A moça assumiu a palavra:

     - Rei Eduardo... Oferece a nós, seu povo, a certeza de que será um exemplo de luz, de paz, gratidão e conforto para todos os corações que te elegem voluntariamente como patrono, zelando pelas nossas artes, ofícios e esperanças?

     A voz da camponesa era doce mas com um quê incisivo que não perturbava o regente, ao contrário, ele a respeitava, admirou o jeito com que ela se apresentava. Tal sensação criou na alma de Eduardo a urgência de ser realmente merecedor daquela nova coroa. Emocionado, ele disse, esbanjando dignidade:

     - Sou vosso! Estarei morto antes que lhes falte a esperança. Enquanto meus olhos brilharem sob o céu, os ampararei. Todas as nossas gerações serão belas e prósperas em tudo que se propuserem!

     A jovem, sorrindo, repetiu o gesto do rapaz que a antecedera na cerimônia, ergueu a coroa que estava consigo e a seguir a desceu, depositando sobre a coroa de rubis. As duas peças se encaixaram perfeitamente, formando uma magnífica construção. Os dois camponeses silenciosamente se retiraram do caramanchão e o rei se levantou recebendo os aplausos e vivas de todos que contemplaram a coroação. Will falou:

     - A comemoração está linda! Mas... E o casamento? E a noiva? Está faltando gente fundamental!

 

Janeiro de 2021

Ana Luiza Lettiere Corrêa (Ana Lettiere)

 

Com Patrícia Lettiere ( http://pintandonopedaco.blogspot.com.br ), Paulo Renato Lettiere Corrêa ( http://osabordamente.blogspot.com.br ) e todos os meus inspiradores.

sábado, 23 de janeiro de 2021

Leonardo e Meredite (Parte 20)

     A aguardada data chegou. O príncipe havia concedido aos aldeões licença para dedicar todo aquele dia aos preparativos, e o dia seguinte, ao descanso. Fôra escolha quase unânime repousar mais cedo na véspera daquela ocasião, de forma que, na madrugada que a seguiu, todos já estavam a seu modo, preparados e ansiosos. O teto celeste se mantinha firme, e, naquela, a exemplo das manhãs precedentes, se mostrava de um azul amistoso.

     Leonardo, magistralmente continuava conseguindo ir e voltar do local onde aconteceria a celebração sem ser visto. Fez isso numerosas vezes, desde o raiar do Sol, assim conseguiu arrumar tudo a contento... Cuidou de cada detalhe pessoalmente. Além disso, contou com duas dezenas de amigos que a três dias haviam chegado à vila e se entregaram à missão de auxiliá-lo secretamente em seus projetos. De forma que, no horário previsto, ele se encontrava na praça, cercado por praticamente todas as pessoas que desejavam participar da comemoração.

     O inacreditável quando se faz realizado vem acompanhado da benção da perfeição. Quando sugeriu que cada um dos presentes naquele castelo por ocasião da entrevista de Meredite, assim como todos que resolvessem encontrá-lo ali, na praça, se vestisse com um ar místico, não esperava pelo que estava agora, diante de si. Maravilhava-se com a mais fina seleção de habitantes dos bosques que já vira. Os vestidos contavam com saias esvoaçantes e ornados de alças simples, finalizadas por laços ou mangas compridas, fluidas e transparentes. Os trajes masculinos eram adequados ao mesmo clima utópico, os tecidos perderam toda a rudeza, estavam leves como os semblantes de todos que esqueceram as asperezas da lida e pareciam recobrar a serenidade típica dos que nasceram para a alegria.

     Estavam como ele, eram ele. E o artista se questionava, enquanto sorria, abraçava, conversava, seu pensamento não calava aquele "Será?"... Será que eles, todos, tinham sido eleitos pela mesma chama que o escolhera e protegia? Só isso explicava tanto entendimento mútuo. Tinham a mesma sensação no tocante à divindades. Eduardo se encontrava entre o povo. Fôra sem escolta, apenas acompanhado por residentes e trabalhadores do palácio. Porém todos já se mostravam integrados ao grupo. O príncipe, inclusive evitara o protocolo de ser reverenciado.

     Leonardo se aproximou, o cumprimentou, deixando evidente seu contentamento por ter um amigo tão ilustre ali presente, depois, se voltou para todos e permaneceu um minuto em silêncio, pondo-se a observar se alguma presença ainda era aguardada. Os olhares e acenos de cabeça que os ali postados lhe dirigiam como resposta confirmaram que os que pretendiam seguir com ele, ali já estavam. O artista convidou:

     - Amigos, por favor, apenas me acompanhem, e... Conversemos!

     Assim ele assumiu a liderança da jornada, cercado pelos moradores da vila. Se formava ali em diante uma pintura na qual todos se empenhavam por harmonizar seus passos, canções e falas. Foram se afastando dos monumentos e rumando às branduras... Até que as casas e fontes artificiais se tornaram mais do que esparsas... Ali, naquele novo ambiente, conquistado após algumas dezenas de minutos, construções eram inexistentes. Ele os havia conduzido ao mesmo campo de relíquias vegetais e perfumadas ao qual tantas vezes, em segredo, havia oferecido suas meditações... Leonardo nunca esquecera de quando ele conversara ali com sua confidente, Meredite.

 

Janeiro de 2021

Ana Luiza Lettiere Corrêa (Ana Lettiere)

 

Com Patrícia Lettiere ( http://pintandonopedaco.blogspot.com.br ), Paulo Renato Lettiere Corrêa ( http://osabordamente.blogspot.com.br ) e todos os meus inspiradores.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Leonardo e Meredite (Parte 19)

     O espaço, o tempo e as almas que aguardavam o enlace do artista se faziam bela e milagrosamente preenchidos pelas atividades e cooperação de todos. Seus afazeres cotidianos continuavam intensos mas a emoção acesa pelos eventos revolucionários despertados na noite da visita deles ao castelo tornava tudo harmonioso. Trabalhavam em suas causas, mas também se entregavam às livres asas do sonho vivo, a expectativa os estimulava. Pensavam e preparavam suas roupas para a comemoração, assim como, constantemente procuravam Leonardo para contribuir para a plenitude de seu momento, fosse através de uma oferta física ou através de ideias.

     As horas de sono, para todos, eram curtas e passavam rápido, mas, talvez por isso mesmo, e, mais ainda talvez como recompensa pela gentileza geral que se instalara naquelas terras, as noites eram imensamente revigorantes.

     Vários aldeões no decorrer daquelas luas se mostravam enfeitiçados, se dedicando a compreender e construir amuletos. Sim, pois Meredite iniciava sua auto-proposta de transmitir algo de si, descobrir dons e ampará-los em seu aperfeiçoamento.

     Ao convidar os cidadãos para o aprendizado, não contava que a adesão seria tão vigorosa. O interesse era real e forte. Muitas vezes ela ficava observando cada uma daquelas mãos e corações que sem perceber já a superavam, eram mestres por instinto. Entre essas auras criadoras se destacava Tamara... Justamente quem lhe motivara a começar a compartilhar o seu saber. A amiga lhe procurara dois dias depois de sua ida à residência real e perguntara se podia acompanhar o processo de confecção de uma jóia, pois natureza e magia falavam ao seu espírito desde a infância. A vendedora comovia e orgulhava a artesã ao deixá-la entrever habilidade em captar e fundir com trançados e perguntas as vibrações de linhas e minerais com a história e capacidades dos presenteados.

     O céu era uma constante de luz, mas Leonardo, mesmo assim, diria que sua melhor estrela era aquela que conseguia fazer-se secreta sob o negror daquele pano, segura em seu cavalete, ao mesmo tempo em que fazia-se notável com seu sorriso, caminhante entre gramas e cidadelas. Mais gloriosa do que a criação era a musa, essa, a inspiradora, se fazia indispensável para ele, um poeta entre tintas, suas mãos eram como seus pincéis, penas de anjos, só um meio sobrenatural de amar.

 

Janeiro de 2021

Ana Luiza Lettiere Corrêa (Ana Lettiere)

 

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quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Leonardo e Meredite (Parte 18)

     O nobre falou:

     - Como a noite segue e as estrelas bailam e se fundem para dar origem ao nosso mais radiante astro, sejamos também um caminhar de poesia e esperança. Se a entrevista com nossa artesã nos parecia obra do imprevisível, que cada palavra e despertar com que ela e os seus condecoraram nossa vila recebam um pouco de nossa gratidão. Aldeões, se seus corações forem gentis, façam o favor de me acompanhar!

     O cortejo seguiu uma ordem implícita. O príncipe à frente, conselheiros e convidados, ou seja, grande parcela da população. De uma maneira espantosa, quase todos foram confortavelmente acomodados nos macios bancos que acompanhavam as compridas mesas que estavam dispostas na área dedicada às refeições. Alguns dos presentes preferiram não sentar, mostrando maior atração pelo fabuloso espaço livre diante da orquestra. Inclusive já estavam a formar pares, esperando pelos primeiros acordes. Também haviam grupos que, tímidos, circulavam nos salões precedentes ou no jardim do palácio, mas também esses eram abundantemente guarnecidos pelas iguarias que iam e vinham em pequenas porções postadas nas bandejas habilmente transportadas por copeiros refinadamente vestidos.

     O interior da residência ganhava ares de uma calorosa, sadia e desorganizada interação. Meredite e Leonardo foram praticamente os últimos a sentar à mesa. Eles, a exemplo de muitos estavam inebriados com aquela atmosfera tão diversa da que os envolvia habitualmente, cada móvel, cada um daqueles objetos ali dispostos era quase impalpável. As mesas eram de madeira e cobertas com o mesmo tecido salmão presente na cortina da porta assim como adornava longa e volumosamente as janelas encimado por uma toalha de renda branca. Candelabros de três braços, dourados e magistralmente bordados por filigranas se faziam notar seguindo intervalos regulares. Entre uma e outra dessas luminárias, destacavam-se arranjos baixos e cheios de tenras rosas cujo aroma e cor as faziam parecer pequeninos pêssegos.

     Os músicos estavam tão inspirados quanto o salão estava iluminado... Um regalo de poesia, envolvimento, romances. Conversas viraram danças e as taças brilharam e cantaram brindes. Assim, as horas seguintes partiram leves e eternas. Porém, o Sol muito além das janelas e ainda um tanto avançado nas distâncias do horizonte se revelava o suficiente para lembrar que o novo dia sobre a terra clamava pela atividade daqueles artesãos para de fato começar.

     E foi quando a primeira de suas flechas de calor alcançou a torre mais alta do edifício, que, pouco a pouco, os ali presentes começaram a se despedir do festejo. Dessa forma, também Leonardo e seus acompanhantes resolveram dar as costas aos portais do palácio e, de braços dados e risos unidos caminharam pelas ruas úmidas de orvalho, rumo às suas casas. Eram acompanhados pelo aroma da relva que delimitava as construções e sobrevivia aos calçamentos e também pelos olhares inocentes dos pequenos pássaros matutinos.

     O grupo de amigos ia ficando reduzido ao longo daquela alegre peregrinação. De tempos em tempos uma diferente porta surgia e um de seus membros após trocar beijos, abraços e palavras de ânimo com seus pares se lançava ao seu interior. Ao quase final do trajeto estavam diante da residência da artesã, Leonardo, Meredite e Tamara. O artista ao oferecer seus votos de até breve à mais recente fada reconhecida pela vila, falou:

     - Meredite, sei o quanto você é comprometida com sua arte e energia. E te conheço o suficiente para entender o quanto você deseja me oferecer um amuleto ainda hoje. No entanto, tenho um pedido sincero para te fazer. Não se ofenda, por favor. Não quero interferir em sua visão, seus métodos... Mas, me entregue a jóia somente no dia do meu casamento... Quando você chegar ao local da celebração. O que me diz?

     - Não está me insultando, Léo. Pelo contrário! Fico honrada em contar com sua confiança para te presentear em um dia tão significativo.

     Todos trocaram cumprimentos repletos de afeto e a artesã acessou o conforto de sua morada enquanto o pintor acompanhou Tamara até o lar da vendedora. Os passos desses dois testemunharam de suas palavras uma confidência, um apelo e um juramento.


Janeiro de 2021

Ana Luiza Lettiere Corrêa (Ana Lettiere)


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quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Leonardo e Meredite (Parte 17)

     Solenemente, pediu que ela se levantasse e beijou uma de suas mãos. A artesã sorriu e solicitou que Tamara devolvesse a ela a bolsa de renda que havia solicitado que a amiga guardasse enquanto ela era entrevistada. Assim feito, Meredite retirou do interior da peça, o amuleto que havia criado para o príncipe. A jóia ainda estava protegida pelo lenço no qual ela a havia envolto. O soberano recebeu o presente e aguardou enquanto a criadora desfazia as dobras do pano. Por fim, ela deixou exposto o artefato místico nas mãos do regente e perguntou:

     - Qual a cor dessa pedra, Alteza?

     Ele não compreendera a razão do questionamento, mas, sem pestanejar, respondeu:

     - Azul!

     Meredite sorriu:

     - Então, você de fato a merece! Enfrentou a noite, despertou sua estrela, redescobriu sua essência... A que une as alturas celestes com as profundezas do mar. Alguns reis escolhem suas coroas. E, algumas vezes, são as coroas que decidem quem serão seus reis. Você é um líder que nem mesmo precisaria de uma, pois a própria História assim te apontou. Seu governo nunca fará prisioneiros, pois não é regido por um refém. Suas terras continuarão prósperas e serão registradas em epopéias de paz.

     O príncipe se deixava levar pelo clima de profecia e responsabilidade daquelas palavras enquanto a artesã atava a jóia ao seu pulso. Em seguida, declarou gentilmente:

     - Seguirei de bom grado minha sina para com nossos tempos! E aproveito para antecipar ao conhecimento de todos qual será o meu primeiro desejo real... Que minha coroação seja eternizada pelas cores do Mestre Leonardo!

     O artista se mostrou honrado com a solicitação, por considerar o futuro rei alguém de vasta dignidade. O pintor, porém, ainda tinha reservas de sua prolongada postura anti-monárquica. Tentava descobrir um meio de recusar a proposta sem parecer ingrato quando foi assaltado pelas lembranças do que acontecera aquela noite... Sua diva tinha a nobreza estampada em sua alma, mas também em seu sangue... O que lhe fazia lembrar de rubi... Aquela pedra que ainda o perseguia, que o tinha encontrado até em uma mísera taverna... A gema que ele tentava desvendar e que tantas vezes chegava aos seus caminhos justamente através das mãos de um homem que lhe soara, até minutos atrás, absurdamente desprezível.

     Leonardo estava agora em um castelo mas era a taverna que o chamava, podia até sentir seu cheiro... E ele entendeu! Entendeu o que Meredite já sabia. A jovem se aproximou dele, pegou em seu braço, e, sob o olhar surpreso e interrogativo de Leonardo, retirou a pulseira com que o havia presenteado. Ela decidiu falar:

     - Não se assuste... Essa pedra está partindo somente porque já cumpriu sua missão junto a você. Porém, meu amigo, bardo dos traços, você não ficará sem proteção. Eu mesma construirei uma pulseira com um cristal que ainda não chegou às minhas mãos, mas que minha intuição diz que foi concebido pelo universo especialmente para você.

     Tudo que o rodeava, somado às emoções que se precipitavam em sua alma, lançava o pintor em uma rede de serenidade. Ele aquiesceu. Eduardo, observava tal atitude até que tomou a iniciativa de se pronunciar:

     - Perdoe-me se estou sendo inoportuno interrompendo seu raciocínio, Mestre Leonardo. Mas creio que minha intromissão é benéfica se levarmos em consideração que provavelmente colocará término em seu dilema. Eu disse desejo e não ordem. Sinta-se livre para declinar de meu convite, amigo.

     - As dúvidas fazem transcender, Alteza... E como nossa jovem artesã insinuou e acertou, eu concluí uma etapa da minha vida. Ficarei muito honrado em registrar o princípio de sua caminhada como Majestade.

     - Você tem um grande destino, não apenas por causa do aqui, mas principalmente por seus rios e nuvens. Que os deuses abençoem todas as esperanças que nascerem de teu peito. Esse trono também deseja presentear-lhe!

     Fez uma pausa para aguardar a aproximação de um criado que logo colocou algo sobre suas mãos. Era uma pequena caixa revestida com seda azul. O príncipe continuou:

     - O tesouro mais querido que já confiei a alguém. Que o pilar secreto da nossa dinastia se torne uma sagrada memória para nosso povo. Eu a amo, e por isso mesmo digo sim para o que reconheço que seria sua celestial vontade.

     Todos olhavam para aquela caixa fechada, ansiosos pelo ato em que culminaria tal fala do soberano, que, naquele momento apresentava ao público, a face que Nicolina sempre adorara...O homem, o irmão. Ele finalmente abriu a caixa revelando à assembléia um solitário rubi de peculiar lapidação. O brilho daquela gema rubra em meio ao acolchoado azul do interior da caixa evocava os raios persistentes de um acordar de Sol em meio ao oceano.

     - Só eu, Nicolina, Chiara, meu pai e meu avô compartilhávamos o conhecimento sobre essa pedra e seu valor para nossa estirpe. Quando Nicolina nasceu meu pai destinou o rubi para ser o seu símbolo, sua presença em nosso palácio, substituiria a sua ausente cadeira durante as refeições e a tiara ignorada nas cerimônias oficiais. Esse rubi tocou a fronte dela antes de seu primeiro mês de vida.

     O nobre entregou a caixa e seu conteúdo a Leonardo, que, aos poucos, se recuperava da surpresa e tentava dizer algo como imediato agradecimento, no entanto sem obter sucesso... Palavras não eram capazes de superar o túnel que ia de seu coração ao mundo externo. Mas as lágrimas, essas sim, bravamente venceram o deserto dos seus olhos, e, de lagos, se transformaram em oceanos. Era a química, a física, do sentimento... A flor da emoção é sempre a melhor das réplicas... A que, exatamente, nem uma só alma das que compõem uma multidão consegue desconhecer ou ignorar.

     O artista cuidadosa e despretensiosamente tocou e deslocou o rubi da pequena almofada que o retia, segurando-o à altura de seus olhos. Olhos que ainda reservavam pequenas poças que lhe turvavam a visão, porém estas foram imediatamente dispersas por ação das seguidas piscadelas que o sábio lhes impôs permitindo que o borrão vermelho se revelasse um delicado obelisco. Aquela pequena forma de energia entre seus dedos lhe permitia contemplar e amar, a si mesmo, todos, tudo... Ele sentia-se um meteoro incapaz de se perder, dominava a alegria daquela viagem entre o que existe de mais longínquo ao mais íntimo.

     Tal evento foi de fato poderoso, e não seria o último em suas estradas. Com essa certeza, portanto, mesmo estando tão envolvido, percebeu que sua presença completa era requisitada em silêncio por sua atualidade. ''Despertou'', e, ao inspecionar o seu redor soube que aquelas centenas de pupilas não o esmiuçavam, estavam encantadas... Ele buscou pelos olhares mais familiares solicitando um porquê. Seus amigos captaram aquele pedido e em quase perfeita sincronia, os olhares de todos eles deslizaram do pintor para o rubi. Então ele se leu e preencheu seu significado... Se reconciliou com sua paz. Ele tinha um mito da fortuna em sua mão e já não se sentia revoltar. Sua angelical Nicolina havia encontrado um jeito de lhe beijar, saná-lo de seus pesadelos. Sorriu, agradecendo a ela em pensamento, olhou para o príncipe e falou:

     - Você não faz ideia de quanta vida está acrescentando aos meus passos! Mas será justo para consigo mesmo se privar de tamanho Bem?

     - Eu sempre a terei comigo, em meu ser, em minha carne. Mas justiça é deixá-la viver com quem a eternizou em matizes. E esse alguém é você, que a confortou, a protegeu, com seus dons. Ela foi mais feliz ao seu lado, passeando, bailando, do que seria entre nossos ouros e tapetes.

     O soberano fez sinal para que Meredite se aproximasse mais um pouco do mestre, recebeu a pedra das mãos de Leonardo e a entregou à jovem, que, instantaneamente, entendeu a total importância de estar ali, naquela noite. Eduardo continuou:

     - Leonardo, algo me diz que muito em breve você terá um amuleto abençoado por duas fadas. Faça um favor ao Universo, honre-o.

     A artesã estava empolgada. Guardou o rubi e disse:

     - Amanhã mesmo receberá sua nova pulseira, Léo!

     - Várias vezes transitei pelas alamedas dessa vila e me inspirei. Em uma das minhas visitas, cheguei atraído, planejei ficar... Mas meu terrível gênio corsário influenciado pelos ventos apaixonados e turbulentos da arte não me permitiram ficar. Parti, aprendi, reavaliei e confirmei. Nunca mais recusarei cor para quem a procurar em mim. Meus pincéis e telas abrirão castelos, desfilarão entre jardins, serão luz para olhos e lábios. Esse mais recente retorno me trouxe aqui acompanhado pela minha intenção de permanecer. Por quanto tempo? Um mês ou uma vida. Digo isso porque não estou sozinho... Meus companheiros sabem sobre o que falo... Tenho um amor. E, embora eu a saiba tão perto, não ouso falar em seu nome, decifrar suas esperanças... A espero e almejo que ela me diga o que seu espírito clama... Preciso saber até mesmo se ainda sou o alvo adorado de suas atenções. Mas, Meredite, um presente ofertado por você é um reinado físico da sua benevolência, minha amiga!

     Novamente os modos de Leonardo geraram certa comoção nas pessoas, com mais exaltada evidência naquelas que lhe eram mais próximas... Estas pareciam pesar se a forma como ele descortinara suas ambições românticas naquele ambiente fôra apropriada. O príncipe se mostrou um tanto intrigado com aquela informação, mas, em momento algum se arrependeu de ter elevado, naquela cerimônia, o artista à condição de persona indispensável. Apenas deixou escapar:

     - Então, devemos aguardar a visita de uma deidade!

     Alesandro opinou um pouco taciturno:

     - É o que todos esperamos... Só assim seria justificado o que nosso amigo está nos permitindo crer... Que irá recepcioná-la, assim, de pronto, diante de um altar!

     - Será mesmo tão repentino? Em tal caso, esta propriedade régia lança seus serviços às suas pretensões, caro virtuose! - o príncipe comentou.

     - O reverencio por mais essa solicitude, Alteza! No entanto devo me abster de aceitar a sua oferta. Eu e minha amada já colorimos a tela de nossa união... Existe um local, aqui, nesse povoado, que é idílico como corações que se aliançam.

     - Não ousarei questionar sua determinação, Mestre! E deixo manifesta minha intenção de ser um de seus convivas. Todavia, pretendo ser cada vez mais um soberano que não confunde seu sinete com permissões. Pergunto: Serei bem-vindo em sua celebração?

     - Eu me revelaria um fracassado se você não se sentisse quem verdadeiramente é! É como nós!

     - E onde e quando tudo acontecerá?

     - Acredito que trinta dias serão suficientes para que todos se vejam providos com ânimos e trajes propícios. Quanto ao ambiente só posso recomendar aos que desejarem comparecer, que precisam se reunir comigo na praça central da vila na décima hora do Sol escolhido para o enlace.

     Além do príncipe, Meredite, amigos de Leonardo, serventes do palácio, e, todos que fecharam suas casas e se entregaram naquela noite aos caminhos que guiavam ao castelo, sabiam que o convite tremulava como uma gloriosa bandeira ao sabor do vento de honrados reinos. Os dizeres seguintes de Eduardo adicionaram uma pitada de surpresa e um mundo de felicidade ao vasto salão:

     - Entendo que a maioria de nós se reconhece agraciada e desfruta de imensurável deleite por ser alvo do chamado para compartir de um de seus passos! Receba minha palavra de que pode ter como certa nossa adesão! Com que espécie de vestimentas devemos nos apresentar?

     - Que cada um vá da forma como interpreta um ser supremo.

     Aquela resposta resultou, a título imediato, em um médio torpor da parte dos que a ouviram. Tal sensação, entretanto, foi nitidamente cedendo conforme os presentes se perceberam gostando da sugestão, pensando em suas inspirações e se identificando como elas.

     O príncipe direcionou um sutil gesto de comando para alguns criados que se encontravam junto a uma espaçosa porta lateral que até aquele instante havia sido mantida fechada. Os servos imediatamente a abriram, revelando um aposento duas vezes maior do que aquele em que havia se dado o encontro. Quando aquela barreira de cristal com acortinado salmão cedeu passagem à visão, o que ofertou foi uma sala harmonicamente organizada para servir à duas atividades consecutivas: Danças e banquetes.


Janeiro de 2021

Ana Luiza Lettiere Corrêa (Ana Lettiere)


Com Patrícia Lettiere ( http://pintandonopedaco.blogspot.com.br ), Paulo Renato Lettiere Corrêa ( http://osabordamente.blogspot.com.br ) e todos os meus inspiradores.


terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Leonardo e Meredite (Parte 16)

     - O quê? - veio como uníssono

     - A minha irmã! Não a Chiara. Mas sim uma nobre sem coroa. Nicolina... Somente uma flor dos montes. Era uma camponesa, meiga, única. Que nunca veio a esta vila. Ela me aconselhava e deixou esse mundo, e eu, desesperado, tenho corrido por reinos, procurando uma voz na qual eu a veja refletida. A encontrando em todas e em nenhuma, ao mesmo tempo. Entretanto, hoje, perto de Meredite, descobri que o vácuo que eu combatia não existe. Cada pedaço de silêncio que tenho em meu peito é uma semente que minha irmã já conhecia em mim. Promessas que não devo tentar ignorar e que, aos poucos, irão germinar em prosperidade para meu povo.

     Leonardo não conseguiu conter sua inquietude:

     - Perdoa-me por interromper, Alteza... Posso estar vivendo uma intrigante coincidência, mas, particularmente, desacredito dessa possibilidade. Conheci uma Nicolina, a muitos anos... De fato um ser diáfano habitando campos de trigo. Sua irmã?

     O príncipe estava emocionado com as estrelas que desabrochavam naquela noite:

     - Que estranha e preciosa porta de milagres você acabou de abrir? - perguntou olhando para a artesã.

     Voltando a encarar Leonardo o regente continuou:

     - Como todos sabem, recentemente, meu avô, o rei, faleceu... Durante sua existência, e, mesmo após sua despedida, nenhuma declaração íntima e familiar que fiz e farei durante essa reunião era assunto totalmente conhecido ou admitido, nem mesmo entre os membros da corte. Meu pai vivia preocupado com a segurança de nossos domínios, mas amava a todos nós, incluindo Nicolina... Tanto que sempre me levava juntamente com Chiara para brincar com ela em uma vila não muito distante dessa, um lugar famoso por suas uvas. Quando ele se foi, meu avô, que desejava que todos esquecessem Nicolina, pois a via como uma marca da infidelidade real, a transportou para outras terras. Só eu a reencontrei muito tempo depois. Ela aceitou minha amizade com todo coração. Mas pediu que eu entendesse o seu desejo de se manter afastada e até mesmo desconhecida pela corte. Eu a visitava periodicamente, porém, na última vez em que resolvi procurá-la, um dos seus amigos me comunicou que ela havia falecido. Não suportei ter conhecimento da perda sozinho, procurei meu avô e contei tudo, desde minha interação com Nicolina até aquele desfecho.

     Solicitando uma taça de água, o príncipe aproveitou para circular pela sala e abrir mais algumas janelas, de forma que o ar noturno trouxesse mais disposição para o ambiente. Depois de apreciar a bebida ele se pôs a desabafar:

     - Para meu desencanto ele me confessou que a um tempo a havia encontrado, não só pessoalmente, como descobriu retratos seus efetuados por um artista que havia se recusado a eternizar Chiara em pintura. Contou-me que os expôs ao público... O que, conhecendo o temperamento dela, posso afirmar que deve ter fragilizado as fibras do seu coração. Não consigo perdoá-lo por isso. Essa é a razão pela qual ainda não aceitei a coroa e o título de rei, embora saiba que não poderei adiar mais essa iniciativa. Até hoje conservo aquele retrato dela, o que ele me ofertou... A obra que ele trouxe para o castelo como uma medalha.

     Todos olhavam para o príncipe, fascinados. Chegaram ali querendo se curvar diante de um trono, mas estavam diante de um herói que enaltecia suas auras. Leonardo murmurou:

     - Eu poderia ver esse retrato?

     O soberano assentiu, e, entregando uma chave a um de seus camareiros, solicitou que este buscasse a obra em seus aposentos. O homem retornou trazendo a peça e a entregou ao príncipe, que, por sua vez, a colocou nas mãos de Leonardo. O pintor ficou analisando por uns instantes o envelope que guardava a pintura, até que, suspirando se investiu de coragem e retirou uma delicada folha de seu interior. Ficou a admirá-la até que lágrimas começaram a desbravar seu rosto. Ele então implorou em silêncio pelo consentimento do príncipe, que, entendeu a mensagem e acatou. Leonardo entregou o desenho para Meredite, que o contemplou e o passou para Tamara que repetiu o gesto de sua amiga. Dessa maneira, a folha, pacificamente começou sua linda jornada para além de todos os espíritos presentes naquele castelo e ao seu redor.

     Um aldeão refletiu em voz alta:

     - Não está assinada...

     O príncipe confirmou:

     - A minha irmã nunca me disse o nome do artista que era seu melhor amigo... Mas ela me ensinou como eu poderia identificá-lo. Ele tinha uma superstição... Você pode adivinhar qual era, Leonardo?

     O artista falou:

     - Só colocar seu nome em uma obra que já tivesse um novo destino conhecido, um guardião, uma galeria...

     Leonardo se encaminhou para uma das janelas abertas e ficou observando o horizonte. O soberano se aproximou dele e tocou em seu ombro, passando a falar enquanto sua alma também navegava naquela maré de estrelas:

     - Acredito que a partir de agora posso te considerar mais do que um Mestre de artes... Posso te chamar de amigo. Tenho motivos intensos para agir assim. O principal deles você talvez não tenha consciência quanto à proporção... Ela foi sua musa... E, em todas as vezes que ela se referia a seu pintor misterioso, fazia com uma felicidade tão gloriosa... Ela vibrava por saber que era querida por você. Dizia sempre que você colocara sobre os ombros dela um manto de rainha. Então, jamais se arrependa de tê-la retratado.

     Em seguida, Eduardo e Leonardo trocaram um aperto de mão e o pintor revelou:

     -  Assuma com o espírito tranquilo seu lugar de rei... Tenho uma razão que é suficiente para acreditar que seu avô, embora um pouco tarde demais, foi tocado por Nicolina. E, da maneira que ele era capaz, demonstrou seu apreço por ela e gratidão por vê-la imortalizada. Ele assumiu diante de você a tolice que ele cometera por capricho. Tenha certeza de que muitos trabalhadores como a sua irmã tiveram suas vidas melhoradas graças aos rubis que ele me enviou como pagamento pelos desenhos e prejuízos.

     - Você entregou os rubis a vendedores de trigo? Fico com a sensação de que meu avô sabia que era exatamente isso que você ia fazer! Ele devia estar querendo ajudar os cultivadores, mas era orgulhoso demais para ir pessoalmente. Realizou algo bom através de você!

     Os dois seguiram para a escadaria do trono e pararam ao lado da cadeira onde Meredite estava naquele momento.

     Um dos conselheiros se pronunciou:

     - Alteza... Ela está perdoada?

     O príncipe, que havia reencontrado sua harmonia, disse:

     - Não existe perdão, porque não existe culpa. Eu preciso agradecê-la!


Janeiro de 2021

Ana Luiza Lettiere Corrêa (Ana Lettiere)


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segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Leonardo e Meredite (Parte 15)

     Ele se sentou em uma das cadeiras que haviam sido abandonadas e fez um sinal para que Meredite se sentasse na que se encontrava também vaga, próxima à sua. Ele recomeçou a conversa:

     - Diga tudo o que for de seu arbítrio mas devo avisá-la que ênfase mal direcionada se torna imprudência, que está passível de reprimenda.

     - Eu agradeço pelo alerta, príncipe. Falarei com meu coração e aceitarei as consequências.

     - É confortante ver que você entende a situação e que demonstra compromisso com boas maneiras. Vê? Essas pessoas estão observando você, forasteira.

     - Desculpe, Alteza, mas devo discordar... Elas estão aqui por você! Vieram te ver. Quantas vezes essa sala foi igualmente tão disputada? Cada uma dessas almas presentes está ansiosa para formar sua própria opinião sobre alguém que só dez por cento da população já viu caminhando pelas ruas da vila.

     Conversas paralelas em voz baixa começaram, mas logo foram suspensas, substituídas por entreolhares e sinais de concordância entre um aldeão e outro. O príncipe se moveu lentamente em sua cadeira, olhou para o povo e fixando o olhar em um homem que aparentava ser um padeiro, perguntou:

     - Isso é verdade?

     O homem sacudiu avidamente a cabeça:

     - É sim, Alteza! Fiz questão de encerrar o atendimento da minha barraca mais cedo para conseguir um lugar bem próximo ao trono!

     Quando o regente voltou a fitá-la, a artesã falou:

     - Eu também, não me obstinei a vir aqui para desfrutar da condição de entrevistada... Estou no palácio para entender o homem que me abordou em uma rua, o mesmo que eu, em segredo, observei indo além da área movimentada da vila.

     Meredite considerou mais sensato não mencionar diante de todos que ele estava falando consigo mesmo, mas pôde perceber através do olhar que ele lhe lançara, a surpresa e o reconhecimento de que ela havia testemunhado um momento muito particular de seus hábitos... Seu monólogo diante de um ambiente vasto, rústico. Ela recomeçou:

     - Um castelo pode ser poderoso, mas não fala por si só. Uma fortaleza precisa de coragem para sobreviver e um soberano é exemplo quando tem espírito. Seja alguém que, nas vitórias desperte admiração, e, nas derrotas, amor. Que seu peito ostente muitas medalhas, mas que a maior delas seja o seu coração. Siga os chamados e nunca tema o silêncio, porque, antes e depois de todas as suas horas decisivas, ele vai reinar... Aceite, esteja pronto para ele, o tão verdadeiro e inevitável guardião de mistérios.

     A jovem parou de falar e viu que o príncipe estava com uma expressão suave e mantinha os olhos fechados absorvendo as palavras, e, mesmo após o término do breve discurso que lhe foi destinado, ele permaneceu nessa atitude. Seguia nesse estado enquanto a artesã o observava. Um dos conselheiros pareceu ver algum ridículo naquela situação e fez menção de interromper a meditação do soberano... Porém, ela percebeu seu movimento e gesticulou solicitando que ele não fizesse tal coisa. O homem, mesmo contrariado, obedeceu. Mais um tempo passou até que o príncipe voltasse a abrir seus olhos, devagar. Como resposta, recebeu da parte de sua convidada um sutil sorriso que deixava transparecer uma indecifrável carga de satisfação. Ele resolveu se manifestar:

     - É apenas isso que você tem a expressar? Não vai acrescentar algum apelo voltado às questões mais diretas apontadas pelo conselheiro?

     - Alteza, sua reação, mais do que esses seus dizeres prova que você ouviu e entendeu não apenas as linhas e entrelinhas dos meus verbos. Você aprendeu a amar, receber e ser silêncio. De tal maneira que compreendo que se respostas formais são exigidas, Vossa Alteza solicita que eu as conceda mais à História e a todos que estão aqui presentes. E assim o farei.

     O outro conselheiro se mostrou mais exaltado:

     - Fale de forma decente! Você não faz outra coisa além de usar esses termos macios e tentar subornar a alma do público. Parece até que enfeitiçou o príncipe!

     - A princípio me julgam arrogante, e, em seguida, doce demais. Certo, posso dizer que fui propositalmente as duas coisas... Primeiro, por estar desconfiada, quis acessar os reais valores de sua autoridade. Literalmente observar-lhe a aura, conduta e paciência. Depois, eu comecei a conversar com alguém que conquistara meu respeito. Sobre práticas ocultas e malignas... Sabe... Quando alguém tem poderes extraordinários não precisa de um objeto para exercer a influência de sua magia, pode fazer isso através de palavras...

     E a artesã, olhando para o soberano que começava a se mostrar embaraçado, continuou:

     - Se eu fosse maga e o príncipe tivesse passado todo esse tempo esperando por uma contribuição benéfica de minha parte levando em consideração o que acabo de explicar a vocês, eu não necessariamente teria que oferecer um amuleto. Eu poderia vir e lhe dedicar boas energias, transmiti-las de forma incondicional. Então, eu não teria traído o príncipe.

     O conselheiro comentou:

     - Você está revelando saber muito sobre bruxaria e parece ter feito exatamente tudo que está dizendo! Todos viram o príncipe em transe! Você pode ter lançado o mal nele!

     - Eu só propago o Bem! E eu não sou bruxa, nem maga... E mesmo que fosse, e fosse uma feiticeira cruel... Eu jamais mentiria, fingindo fazer uma bondade. Ainda mais em um ambiente no qual ainda existe a força de uma...

     Ela recuou. Pela primeira vez ela parecia estar cansada daquela entrevista. Will interrompeu o conselheiro antes que ele jogasse mais fogo em Meredite:

     - Deixem ela em paz!

     Um tumulto ameaçava se espalhar, porém o príncipe gritou:

     - Uma fada!


Janeiro de 2021

Ana Luiza Lettiere Corrêa (Ana Lettiere)


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domingo, 17 de janeiro de 2021

Leonardo e Meredite (Parte 14)

     E a noite chegou, as estrelas em número e tamanho tal que foram capazes de espanar todo o breu daquelas horas. Todos os amigos, com exceção dos irmãos de Tamara, foram buscar Meredite em sua casa e acompanhá-la ao palácio. Ela os recebera, tinha o semblante leve e se vestia da forma costumeira, não tinha a intenção de impressionar... Não se tratava de um baile. A seu exemplo, todos mantiveram seus trajes habituais. Meredite tratara seus companheiros com o afeto irrestrito de sempre, mostrando o quanto a presença deles a seu lado a permitia sentir-se realmente invencível.

     Caminharam, meditativos, de mãos dadas, passando por vielas sozinhas, apagadas... Tão diferentes dos dias de festival, tão distantes até mesmo de seu último encontro. A cada vez que seus passos ecoavam, viam confirmada a sensação de que as ruas estavam abandonadas, a vila, não. Ao avistarem o entorno do castelo observaram que grande número de aldeões se encontrava ali, provavelmente o palácio estava lotado.

     Devagar, foram conquistando espaço. Durante o percurso algumas pessoas desejavam boa sorte a Meredite, outras perguntavam a eles o que estava acontecendo e outras preferiam manter-se em silêncio.

     Passaram pela ponte levadiça, pelos jardins, e, ao chegar ao portal que dava acesso ao suntuoso salão de espera, se apresentaram aos guardas e tiveram autorização para prosseguir.

     Atravessaram o aposento, seguindo a trilha formada por um tapete verde que cortava o recinto ao meio e chegaram à uma porta dupla de cristal que imediatamente foi aberta quando eles se aproximaram. Estavam entrando na Sala do Trono. Meredite preferiu ir à frente e os demais a seguiram organizados em pares. Deram três passos, se curvaram em profunda reverência e continuaram o trajeto até ficar diante dos cinco degraus que colocavam o trono real acima da assembléia.

     A sala, ao modo do salão de espera, tinha um tapete que a cruzava. Esse tapete era azul, que era o tom que predominava na decoração do ambiente, dividindo espaço com o mármore de um branco imaculado e entalhes dourados. Tal tapete terminava diante da escadaria que levava ao trono e tinha em ambas as margens inúmeras filas de cadeiras acolchoadas que naquele momento se encontravam quase que completamente ocupadas.

     Na verdade, só haviam seis lugares disponíveis, que, na hora devida serviriam aos acompanhantes da artesã... Ela, na condição de entrevistada permaneceria de pé. O príncipe ao vê-los diante de si, se levantou e fez um gesto solicitando que os amigos de Meredite ocupassem seus lugares. Assim foi feito. O soberano voltou a sentar-se, em cada um de seus lados surgiu um conselheiro, a porta da Sala do Trono se manteve aberta e as pessoas que aguardavam do lado de fora do castelo tiveram autorização para preencher o salão de espera e assistir à conversa.

     Um dos conselheiros começou:

     - Sejam bem-vindos! E você, jovem maga, receba nossas especiais saudações! Espero que esteja apreciando nossas instalações... Somos todos serviçais de uma cidadã, que, de coração tão puro, deseja presentear seu regente! Tenha certeza que seu ato fará com que os deuses permitam que a recompensemos generosamente! Deseja dizer algo?

     Meredite, se dirigindo ao príncipe, falou:

     - Muito obrigada pela acolhida, Alteza! Acabo de chegar, mas vejo que seu palácio é belo e bom como toda a sua terra. Meu respeito por todos que defendem seus povos me impediu de me recusar a atender a seu chamado. Mas, lamento ter permitido que nutrisse esperanças de receber uma das jóias que confecciono... Confesso-me menos nobre do que o príncipe me acredita. Sou incompetente, posto que não consegui criar a peça e covarde por não ter me comunicado antes a fim de assumir minha incapacidade. Além disso, não sou uma maga.

     O príncipe voltou a se erguer e murmúrios vindos de todas as partes criavam no local uma massa sonora tumultuada até que o conselheiro voltou a se manifestar:

     - Você não quis fazer!

     - O que você diz pode ser verdade... O fato é que eu não trouxe uma das minhas criações para oferecer. O porquê, só eu sei com certeza!

     O príncipe rondava o trono, pensativo, olhando ao redor, enquanto todos na sala voltavam a ficar em silêncio, aguardando o desfecho do debate. O conselheiro disse:

     - Você traiu o príncipe, está sendo arrogante, e, pode ser acusada de práticas ocultas e malignas, já que se recusa a apresentá-las publicamente quando todos sabem que na solidão de sua choupana confecciona artefatos místicos e distribui sorrateiramente com finalidades desconhecidas.

     - E nesse caso eu seria condenada à pena de morte?

     - Eu diria que evidentemente! Pode se preparar!

     - E o que o príncipe diria?

     - Ah?!

     Eduardo, o príncipe, que estava parado assistindo a batalha de palavras, desceu as escadas e ficou frente a frente com a artesã. O outro conselheiro protestou:

     - Cuidado, Alteza. Essa mulher deixa escapar as palavras mais absurdas sem se exaltar ou perder uma gota de suor... Pode ser uma transtornada!

     O soberano dirigiu certa irritação ao homem:

     - E o que ela pode fazer? Usar seu cinto para me chicotear?

     O constrangimento se espalhou, e, depois de uns instantes de expectativa, o príncipe, com certa cerimônia, falou à Meredite:

     - Porque você está causando esse caos?

     - Só perguntei ao seu conselheiro o que você diria, Alteza. Considera-me culpada por todos os crimes citados e me sentencia à pena de morte?

     - Por que você quer ouvir isso de mim? Ele tem minha prévia autorização para falar em nome de seus soberanos. É conhecedor de nossos costumes e pensamentos.

     - Eu devo minha admiração a seus conselheiros por isso. Mas entenda, príncipe, foi a sua própria pessoa que dirigiu todas aquelas palavras a mim naquele nosso encontro na vila. E eu imagino que você, Alteza, tinha consciência que existiam três possibilidades: Eu podia não vir aqui. Eu viria e traria o amuleto. Ou... Eu me apresentaria e não te ofertaria uma jóia. Em qualquer das situações você poderia me perdoar ou condenar. Como líder sua vontade é lei. Mas eu também tenho a intuição de que sua decisão não viria antes de considerar meus argumentos. Isso porque você gosta do saber. Eu acredito que nesse exato momento você deseja descobrir como vou me defender das acusações feitas pelo conselheiro... Porém quer que eu te revele o que vejo em você e para você. Se eu estiver sendo insolente de forma altamente insuportável, apenas acene aos guardas e eles irão me calar para sempre. No entanto, mesmo sem ter uma peça para te oferecer, posso ter uma ou outra palavra para compartilhar... Mas quero trocá-las diretamente com você, Alteza.

     Leonardo e Tamara saltaram de suas cadeiras, iam se aproximar de Meredite para tentar protegê-la contra alguma agressão, mas foram contidos e mantidos de pé pelos soldados. O príncipe refletia sobre o que acabara de ouvir, enquanto os conselheiros falavam entre si:

     - A proposta é um absurdo!

     - Está completamente fora de questão. Uma criatura que até pouco tempo nem existia para nossa vila, e que está na condição de entrevistada... Querendo colocar condições diante do nosso príncipe!

     - Eu aceito! - o príncipe declarou deixando todos aturdidos.


Janeiro de 2021

Ana Luiza Lettiere Corrêa (Ana Lettiere)


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