quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Leonardo e Meredite (Parte 10)

     Ela assentiu e ele continuou:

     "A minha musa chegou à minha vida sem que eu estivesse procurando por uma. Eu nem acreditava que alguém que respirasse pudesse ser digno dessa nomenclatura. Via os meus amigos deslumbrados, correndo como loucos, pelas ruas e tavernas, bebendo e morrendo por amores e rejeições. Morrendo muitas vezes literalmente... Mas, antes disso, deixando as déspotas de seus Olimpos devidamente eternizadas em suas criações. Porém, também tive meu dia, e ele se estendeu por três anos. Nunca vi minha dama como amante, era uma amiga, uma irmã de alma. Camponesa, vendedora de trigo. Cruzou meu caminho sem querer, e eu, egoísta, decidi que ela não sairia da História. Alguém que não tinha metade da sua beleza, um décimo do seu intelecto, mas cujos olhos deixavam entrever a mesma bravura, entrega, doçura... Um coração humano que não temia tentar ser celeste.

     Ela não posava. A gente vivia, conversava. Então, ou as paisagens vinham até nós ou chegávamos até elas. Minhas paredes e folhas estavam repletas dela. Mas minhas exposições, não. Ela me implorou que fosse dessa forma. Eu jurei. Cumpri.

     Porém, certa vez, outra mulher chegou até mim. Esta bateu à porta do meu estúdio. A fiança da minha consciência é a sabedoria de que, antes de atender à dama, tive o cuidado de ocultar todos os desenhos que eu havia criado retratando a camponesa. A visitante parecia nobre, mas mantinha certa humildade. Comunicou-me que descobrira que eu era um dos pintores proeminentes da minha geração e que ela contava com minha nota artística para se tornar imortal. Recusei. Ela não acreditou. Prometeu-me espaços sempre disponíveis. Mantive minha postura. Começou a suar. Me ofereceu riquezas. Se ofereceu. E, à minha negativa final, me ameaçou... Disse que se faria apresentar devidamente.

     Alerta diante de tais palavras, sem saber o que esperar, transferi todo o material em que eu havia retratado minha amiga para o local onde eu estava residindo. A artimanha só surtiu efeito à princípio. De fato, meu local de trabalho foi a primeira porta a ser destruída alguns dias depois da visita da dama arrogante que, descobri se tratar de uma princesa. O avô dela, também conhecido por ser o rei, havia me informado pessoalmente enquanto seus guardas procuravam por todos os lados evidências de que eu retratava faces, e assim, me obrigar a retratar sua neta. Nada encontrando ali, com uma precisão absurda, partiram para a pousada que me oferecia abrigo. Quando consegui chegar ao local, a entrada do meu dormitório já havia sido violada e o rei e os guardas se encontravam diante das obras ali expostas e procurando por mais. Ao entrar no recinto fui golpeado pelo semblante gélido do rei, que, indo sucessivamente de mim até cada uma das telas em que eu havia retratado a vendedora, simplesmente deixou escapar guturalmente:

     - Você vai pintar a princesa.

     - Não vou... E meu silêncio valerá infinitamente por essa recusa. Que me corte as mãos ou me mate se quiser. Minha palavra é essa.

     O soberano então se descontrolou, sacou sua espada e começou a golpear as pinturas disponíveis nas paredes, descartando cada uma delas. Eu assistia àquela aberração tentando me manter impassível, somente minhas veias sentiam o fogo que se espalhava em mim. Ele e seus subordinados já portavam cada um uma grande quantia dos retratos que eu havia executado em folhas soltas, com grafite, e se preparavam para simplesmente rasgá-los. No entanto, uma das sentinelas que estava a postos na entrada da estalagem vira a minha amiga passando ali em frente justamente naquele momento e resolvera detê-la e encaminhá-la para onde nos encontrávamos. À entrada dela, o reconhecimento geral foi imediato. Ela estava assustada mas mantinha-se digna, deixando que sua estrela a amparasse naquela escuridão. O rei então, com um estranho meio sorriso parecia ter conseguido compartilhar secretamente suas intenções com seu séquito, que rapidamente cercou e conduziu-me junto à minha musa para o exterior da pousada. Atravessamos a estreita rua esburacada e logo todos estávamos na praça principal. Os cidadãos que por ali circulavam, paravam para aguardar o desfecho do drama.

     O rei se posicionou em um lugar de destaque ordenando que aqueles membros do seu exército mantivessem nós dois diante da visão do aglomerado e tomou a palavra:

     - Minha boa, sofrida e guerreira vila! Perdoe-me por interromper! Mas hoje, eu, seu defensor e soberano, sofri um ataque hediondo à minha família e honra! Minha neta é uma Vênus, merecedora de ser saudada pelos mais poderosos mestres! Vocês bem sabem! No entanto, esse biltre se recusa a retratá-la... Mesmo diante dos enternecedores apelos que ela lhe dirigiu. Ele não tem coração nem diante do desagrado de um dedicado avô que saiu enfermo de sua casa para lhe rogar que concedesse esse mero presente à uma menina carente de arte. Esse ignóbil que se considera pintor só sabe dizer "Não!".

     Nesse momento o nobre se refreou como se perdesse o ar e aquele que parecia ser o capitão dos seus guerreiros assumiu o restante do discurso:

     - Meus amigos... Esse homem trata nossa princesa como desconhecida e concede a eternidade das tintas à essa criatura saída da escória! - ele apontava para a camponesa.

     Nesse momento envolvi a vendedora em um profundo abraço. O orador continuou:

     - Ele assume o seu pecado publicamente, como podem ver e devem julgar severamente... A arte é um dom dos deuses e deve ser oferecida aos coroados por eles!

     Então, não resisti e gritei:

     - A arte é amor e suas graças só podem ser concedidas voluntariamente, é uma eternidade para quem merece.

     O rei voltou a se manifestar:

     - Então que o presente que você confeccionou seja conhecido por todos!

     Somente nesse momento uma única e tímida lágrima brotou dos olhos da musa. Aquele líquido foi secretamente absorvido por minha pele, já que ainda a abraçava, cobrindo seu rosto. Enquanto isso, ao comando do regente, todos avançavam sobre os desenhos que haviam sido depositados no chão da praça. Os soldados nos deixaram livres para partir, mas não tínhamos força para dar um só passo. Sentamos ali mesmo, juntos, e esperamos tudo se acalmar. Alguns minutos transcorreram até que isso acontecesse... O último a abandonar o local foi o rei, não sem antes nos lançar seu olhar triunfante. Esperei ela afrouxar o abraço, ergui seu rosto e vi calma. Mas não era a minha sereníssima de sempre. Toda sua luz, seu contorno interior estava ali, mas, havia um cansaço que nunca tivera em seus meandros.

     Ela fez questão de seguir a rotina que adotara até aquele momento, e jamais me culpou pelo que acontecera. Mas eu me questionei e sofria a cada vez que a via, que saíamos, bailávamos... Uma ninfa com energia para agradar a qualquer corte, mas que nunca se reconhecera assim, dizia-se uma filha do trigo. Seu sorriso ia se tornando um passarinho engaiolado. Dobrou suas horas de trabalho, aceitava a responsabilidade de cargas imensas. Perguntei qual era o sentido daquilo. E ela dizia: "Enquanto puder escolher entre chorar ou suar. Escolha suar.". Entendi o que ela queria dizer, com sua dedicação àquele cereal, ela estava construindo, se sentindo plena. Um ano e meio se passou até que chegou o primeiro dia que ela deixou de aparecer na cidade. Nesse mesmo dia fui à casa dela, nos arredores. Ela não gostava que eu aparecesse por lá, porque o lugar só dispunha de um cômodo com um pequeno fogareiro, uma mesa e duas cadeiras. Ela dormia sobre um grosso tapete de lã disposto em um canto. Suas roupas ficavam empilhadas sobre as cadeiras. E os utensílios de que precisava ficavam fixados nas paredes ou sobre a mesa.

     Chamei-a até me dar por vencido, depois, abri a porta da maneira que ela me ensinara e autorizara a fazer no caso de uma emergência. Ao entrar e vê-la deitada em seu tapete, àquela hora, de costas para a entrada da casa, tive a certeza de que nada estava bem ali, que nada estava certo no mundo.

     - Nicolina, Nicolina... - eu ficava bradando já em prantos.

     Com três largos passos a alcancei. Me ajoelhei a seu lado, toquei seu ombro e a virei suavemente. Tinha partido, deixando-me imortalizado um último abraço. Entre suas mãos e seu coração encontrei uma pequena folha. A recolhi delicadamente e vi que se tratava de um ensaio que ela havia executado... Tinha desenhado meu rosto. Olhei para sua face e vi que a porta da gaiola já não existia e que aquele lindo pássaro do seu sorriso voltara a voar. Sei que sempre pousará em lindas árvores."


Janeiro de 2021

Ana Luiza Lettiere Corrêa (Ana Lettiere)

Com Patrícia Lettiere ( http://pintandonopedaco.blogspot.com.br ), Paulo Renato Lettiere Corrêa ( http://osabordamente.blogspot.com.br ) e todos os meus inspiradores.

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