quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Leonardo e Meredite (Parte 17)

     Solenemente, pediu que ela se levantasse e beijou uma de suas mãos. A artesã sorriu e solicitou que Tamara devolvesse a ela a bolsa de renda que havia solicitado que a amiga guardasse enquanto ela era entrevistada. Assim feito, Meredite retirou do interior da peça, o amuleto que havia criado para o príncipe. A jóia ainda estava protegida pelo lenço no qual ela a havia envolto. O soberano recebeu o presente e aguardou enquanto a criadora desfazia as dobras do pano. Por fim, ela deixou exposto o artefato místico nas mãos do regente e perguntou:

     - Qual a cor dessa pedra, Alteza?

     Ele não compreendera a razão do questionamento, mas, sem pestanejar, respondeu:

     - Azul!

     Meredite sorriu:

     - Então, você de fato a merece! Enfrentou a noite, despertou sua estrela, redescobriu sua essência... A que une as alturas celestes com as profundezas do mar. Alguns reis escolhem suas coroas. E, algumas vezes, são as coroas que decidem quem serão seus reis. Você é um líder que nem mesmo precisaria de uma, pois a própria História assim te apontou. Seu governo nunca fará prisioneiros, pois não é regido por um refém. Suas terras continuarão prósperas e serão registradas em epopéias de paz.

     O príncipe se deixava levar pelo clima de profecia e responsabilidade daquelas palavras enquanto a artesã atava a jóia ao seu pulso. Em seguida, declarou gentilmente:

     - Seguirei de bom grado minha sina para com nossos tempos! E aproveito para antecipar ao conhecimento de todos qual será o meu primeiro desejo real... Que minha coroação seja eternizada pelas cores do Mestre Leonardo!

     O artista se mostrou honrado com a solicitação, por considerar o futuro rei alguém de vasta dignidade. O pintor, porém, ainda tinha reservas de sua prolongada postura anti-monárquica. Tentava descobrir um meio de recusar a proposta sem parecer ingrato quando foi assaltado pelas lembranças do que acontecera aquela noite... Sua diva tinha a nobreza estampada em sua alma, mas também em seu sangue... O que lhe fazia lembrar de rubi... Aquela pedra que ainda o perseguia, que o tinha encontrado até em uma mísera taverna... A gema que ele tentava desvendar e que tantas vezes chegava aos seus caminhos justamente através das mãos de um homem que lhe soara, até minutos atrás, absurdamente desprezível.

     Leonardo estava agora em um castelo mas era a taverna que o chamava, podia até sentir seu cheiro... E ele entendeu! Entendeu o que Meredite já sabia. A jovem se aproximou dele, pegou em seu braço, e, sob o olhar surpreso e interrogativo de Leonardo, retirou a pulseira com que o havia presenteado. Ela decidiu falar:

     - Não se assuste... Essa pedra está partindo somente porque já cumpriu sua missão junto a você. Porém, meu amigo, bardo dos traços, você não ficará sem proteção. Eu mesma construirei uma pulseira com um cristal que ainda não chegou às minhas mãos, mas que minha intuição diz que foi concebido pelo universo especialmente para você.

     Tudo que o rodeava, somado às emoções que se precipitavam em sua alma, lançava o pintor em uma rede de serenidade. Ele aquiesceu. Eduardo, observava tal atitude até que tomou a iniciativa de se pronunciar:

     - Perdoe-me se estou sendo inoportuno interrompendo seu raciocínio, Mestre Leonardo. Mas creio que minha intromissão é benéfica se levarmos em consideração que provavelmente colocará término em seu dilema. Eu disse desejo e não ordem. Sinta-se livre para declinar de meu convite, amigo.

     - As dúvidas fazem transcender, Alteza... E como nossa jovem artesã insinuou e acertou, eu concluí uma etapa da minha vida. Ficarei muito honrado em registrar o princípio de sua caminhada como Majestade.

     - Você tem um grande destino, não apenas por causa do aqui, mas principalmente por seus rios e nuvens. Que os deuses abençoem todas as esperanças que nascerem de teu peito. Esse trono também deseja presentear-lhe!

     Fez uma pausa para aguardar a aproximação de um criado que logo colocou algo sobre suas mãos. Era uma pequena caixa revestida com seda azul. O príncipe continuou:

     - O tesouro mais querido que já confiei a alguém. Que o pilar secreto da nossa dinastia se torne uma sagrada memória para nosso povo. Eu a amo, e por isso mesmo digo sim para o que reconheço que seria sua celestial vontade.

     Todos olhavam para aquela caixa fechada, ansiosos pelo ato em que culminaria tal fala do soberano, que, naquele momento apresentava ao público, a face que Nicolina sempre adorara...O homem, o irmão. Ele finalmente abriu a caixa revelando à assembléia um solitário rubi de peculiar lapidação. O brilho daquela gema rubra em meio ao acolchoado azul do interior da caixa evocava os raios persistentes de um acordar de Sol em meio ao oceano.

     - Só eu, Nicolina, Chiara, meu pai e meu avô compartilhávamos o conhecimento sobre essa pedra e seu valor para nossa estirpe. Quando Nicolina nasceu meu pai destinou o rubi para ser o seu símbolo, sua presença em nosso palácio, substituiria a sua ausente cadeira durante as refeições e a tiara ignorada nas cerimônias oficiais. Esse rubi tocou a fronte dela antes de seu primeiro mês de vida.

     O nobre entregou a caixa e seu conteúdo a Leonardo, que, aos poucos, se recuperava da surpresa e tentava dizer algo como imediato agradecimento, no entanto sem obter sucesso... Palavras não eram capazes de superar o túnel que ia de seu coração ao mundo externo. Mas as lágrimas, essas sim, bravamente venceram o deserto dos seus olhos, e, de lagos, se transformaram em oceanos. Era a química, a física, do sentimento... A flor da emoção é sempre a melhor das réplicas... A que, exatamente, nem uma só alma das que compõem uma multidão consegue desconhecer ou ignorar.

     O artista cuidadosa e despretensiosamente tocou e deslocou o rubi da pequena almofada que o retia, segurando-o à altura de seus olhos. Olhos que ainda reservavam pequenas poças que lhe turvavam a visão, porém estas foram imediatamente dispersas por ação das seguidas piscadelas que o sábio lhes impôs permitindo que o borrão vermelho se revelasse um delicado obelisco. Aquela pequena forma de energia entre seus dedos lhe permitia contemplar e amar, a si mesmo, todos, tudo... Ele sentia-se um meteoro incapaz de se perder, dominava a alegria daquela viagem entre o que existe de mais longínquo ao mais íntimo.

     Tal evento foi de fato poderoso, e não seria o último em suas estradas. Com essa certeza, portanto, mesmo estando tão envolvido, percebeu que sua presença completa era requisitada em silêncio por sua atualidade. ''Despertou'', e, ao inspecionar o seu redor soube que aquelas centenas de pupilas não o esmiuçavam, estavam encantadas... Ele buscou pelos olhares mais familiares solicitando um porquê. Seus amigos captaram aquele pedido e em quase perfeita sincronia, os olhares de todos eles deslizaram do pintor para o rubi. Então ele se leu e preencheu seu significado... Se reconciliou com sua paz. Ele tinha um mito da fortuna em sua mão e já não se sentia revoltar. Sua angelical Nicolina havia encontrado um jeito de lhe beijar, saná-lo de seus pesadelos. Sorriu, agradecendo a ela em pensamento, olhou para o príncipe e falou:

     - Você não faz ideia de quanta vida está acrescentando aos meus passos! Mas será justo para consigo mesmo se privar de tamanho Bem?

     - Eu sempre a terei comigo, em meu ser, em minha carne. Mas justiça é deixá-la viver com quem a eternizou em matizes. E esse alguém é você, que a confortou, a protegeu, com seus dons. Ela foi mais feliz ao seu lado, passeando, bailando, do que seria entre nossos ouros e tapetes.

     O soberano fez sinal para que Meredite se aproximasse mais um pouco do mestre, recebeu a pedra das mãos de Leonardo e a entregou à jovem, que, instantaneamente, entendeu a total importância de estar ali, naquela noite. Eduardo continuou:

     - Leonardo, algo me diz que muito em breve você terá um amuleto abençoado por duas fadas. Faça um favor ao Universo, honre-o.

     A artesã estava empolgada. Guardou o rubi e disse:

     - Amanhã mesmo receberá sua nova pulseira, Léo!

     - Várias vezes transitei pelas alamedas dessa vila e me inspirei. Em uma das minhas visitas, cheguei atraído, planejei ficar... Mas meu terrível gênio corsário influenciado pelos ventos apaixonados e turbulentos da arte não me permitiram ficar. Parti, aprendi, reavaliei e confirmei. Nunca mais recusarei cor para quem a procurar em mim. Meus pincéis e telas abrirão castelos, desfilarão entre jardins, serão luz para olhos e lábios. Esse mais recente retorno me trouxe aqui acompanhado pela minha intenção de permanecer. Por quanto tempo? Um mês ou uma vida. Digo isso porque não estou sozinho... Meus companheiros sabem sobre o que falo... Tenho um amor. E, embora eu a saiba tão perto, não ouso falar em seu nome, decifrar suas esperanças... A espero e almejo que ela me diga o que seu espírito clama... Preciso saber até mesmo se ainda sou o alvo adorado de suas atenções. Mas, Meredite, um presente ofertado por você é um reinado físico da sua benevolência, minha amiga!

     Novamente os modos de Leonardo geraram certa comoção nas pessoas, com mais exaltada evidência naquelas que lhe eram mais próximas... Estas pareciam pesar se a forma como ele descortinara suas ambições românticas naquele ambiente fôra apropriada. O príncipe se mostrou um tanto intrigado com aquela informação, mas, em momento algum se arrependeu de ter elevado, naquela cerimônia, o artista à condição de persona indispensável. Apenas deixou escapar:

     - Então, devemos aguardar a visita de uma deidade!

     Alesandro opinou um pouco taciturno:

     - É o que todos esperamos... Só assim seria justificado o que nosso amigo está nos permitindo crer... Que irá recepcioná-la, assim, de pronto, diante de um altar!

     - Será mesmo tão repentino? Em tal caso, esta propriedade régia lança seus serviços às suas pretensões, caro virtuose! - o príncipe comentou.

     - O reverencio por mais essa solicitude, Alteza! No entanto devo me abster de aceitar a sua oferta. Eu e minha amada já colorimos a tela de nossa união... Existe um local, aqui, nesse povoado, que é idílico como corações que se aliançam.

     - Não ousarei questionar sua determinação, Mestre! E deixo manifesta minha intenção de ser um de seus convivas. Todavia, pretendo ser cada vez mais um soberano que não confunde seu sinete com permissões. Pergunto: Serei bem-vindo em sua celebração?

     - Eu me revelaria um fracassado se você não se sentisse quem verdadeiramente é! É como nós!

     - E onde e quando tudo acontecerá?

     - Acredito que trinta dias serão suficientes para que todos se vejam providos com ânimos e trajes propícios. Quanto ao ambiente só posso recomendar aos que desejarem comparecer, que precisam se reunir comigo na praça central da vila na décima hora do Sol escolhido para o enlace.

     Além do príncipe, Meredite, amigos de Leonardo, serventes do palácio, e, todos que fecharam suas casas e se entregaram naquela noite aos caminhos que guiavam ao castelo, sabiam que o convite tremulava como uma gloriosa bandeira ao sabor do vento de honrados reinos. Os dizeres seguintes de Eduardo adicionaram uma pitada de surpresa e um mundo de felicidade ao vasto salão:

     - Entendo que a maioria de nós se reconhece agraciada e desfruta de imensurável deleite por ser alvo do chamado para compartir de um de seus passos! Receba minha palavra de que pode ter como certa nossa adesão! Com que espécie de vestimentas devemos nos apresentar?

     - Que cada um vá da forma como interpreta um ser supremo.

     Aquela resposta resultou, a título imediato, em um médio torpor da parte dos que a ouviram. Tal sensação, entretanto, foi nitidamente cedendo conforme os presentes se perceberam gostando da sugestão, pensando em suas inspirações e se identificando como elas.

     O príncipe direcionou um sutil gesto de comando para alguns criados que se encontravam junto a uma espaçosa porta lateral que até aquele instante havia sido mantida fechada. Os servos imediatamente a abriram, revelando um aposento duas vezes maior do que aquele em que havia se dado o encontro. Quando aquela barreira de cristal com acortinado salmão cedeu passagem à visão, o que ofertou foi uma sala harmonicamente organizada para servir à duas atividades consecutivas: Danças e banquetes.


Janeiro de 2021

Ana Luiza Lettiere Corrêa (Ana Lettiere)


Com Patrícia Lettiere ( http://pintandonopedaco.blogspot.com.br ), Paulo Renato Lettiere Corrêa ( http://osabordamente.blogspot.com.br ) e todos os meus inspiradores.


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