quarta-feira, 27 de maio de 2009

Conversa com o Tempo

Postado no site Autores.com.br em 27 de Maio de 2009.


     Era noite, eu tentava em vão adormecer, não tinha paz, estava triste, preocupada com o futuro, o noticiário daquela noite havia sido deprimente. Foi então que percebi que uma brisa suave tocava meu rosto e uma leve neblina ocupou o quarto. Fiquei como que hipnotizada e numa fração de segundos, estava em um novo cenário. Que mundo era aquele? Para onde meu pensamento me levava?

Estava agora em uma pequena aldeia no topo de uma montanha, aliás, além daquela aldeia só haviam florestas e infinitas e paradisíacas montanhas. Pessoas em trajes coloniais passavam vagarosamente por mim, mas era como se eu não existisse, não olhavam nem falavam comigo. Pensei "enlouqueci ou estou sonhando". Então, de repente, aquela calmaria foi interrompida pelo som de clarins que se aproximavam acompanhados por passos firmes, de um ritmo inquebrável.

Apesar do alarde, os habitantes daquele lugar pareciam não se importar com nada, nem sequer olhavam na direção do som. Porém, reparei que algumas pessoas começaram a parar o que estavam fazendo para observar o que acontecia, essas não pareciam mortos-vivos, estavam interessadas, mas continuavam sem me ver. Foi aí que testemunhamos o acontecimento mais miraculoso e belo que se pode presenciar...

Diante de nós, caminhava o Tempo... temido por uns, idolatrado por outros. Grande amigo de artistas, fonte infindável de inspiração, com seu perfume de sabedoria eterna. Não era uma presença e sim uma essência. Criador e transformador, a imortal potência universal. Lado a lado com o Tempo desfila a História, sua companheira inseparável. Vem em sua carruagem dourada conduzida por inúmeros unicórnios de um branco ofuscante. As cortinas estão fechadas, preservando o mistério do Amanhã. Os unicórnios estão livres, mas de maneira mágica se mantem perfeitamente organizados e conduzem imponentemente a carruagem.

Logo depois chegam ao alcance de nossos olhos o que pode ser revelado, o que já foi conquistado. Os clarins haviam a muito silenciado dando lugar a uma série de festejantes sinfonias. Muitas alegrias ainda me esperavam para encher minha alma de emoção e esplendor. Como uma grande confraternização de velhos amigos, heróis, pensadores e pessoas de Bem de todas as épocas passavam diante de mim, envoltos em áuras aromáticas. Reconheci grande parte daquelas pessoas. Sim! Eram elas mesmas! Se trajavam com suas vestimentas preferidas, exatamente iguais aos seus melhores momentos vividos aqui na Terra. Eram figuras históricas que muito fizeram pelo mundo e que agora tinham seus retratos estampados em livros. Outras, anônimas, mas que com certeza muito mereciam estar ali, na imensa côrte da História.

Para minha surpresa, percebi que eles não me ignoravam, e que sorriam e acenavam para todos que tinham parado para ver aquela majestosa passagem. Acenamos, reparei que meu coração acelerava a cada rosto que eu reconhecia... tantos líderes, mártires e idealistas que cativaram minha alma e que sem saber explicar, mesmo sendo de outra época, sempre dediquei profunda amizade e admiração. Todos ali tão perto de mim!

A alegria no desfile era crescente, todos conversavam, riam, dançavam. Não pude resistir, fui me aproximando, até que, quando percebi já estava entre aquela imensidão de pessoas. Eram muito gentis, quando notavam que eu não conseguia acompanhar a marcha, pegavam em minhas mãos e me davam forças. Andavam depressa, talvez demais para meus passos humanos. Notei que os moradores do vilarejo que estavam até então só observando, haviam se juntado a nós e só aí eles me viram e acenaram para mim simpaticamente. Só então compreendi, de alguma forma voltei no Tempo, aquelas eram pessoas do Passado, os que ignoravam tudo o que acontecia, certamente tinham abandonado suas esperanças, perdendo a capacidade de ver a beleza do mundo astral. E os que seguiram com o Tempo, com certeza eram os sábios daquela época. Ali, na reunião das eras, todos eram iguais e se entendiam fraternalmente.

Quando eu ia me aproximar para falar com eles, fui arrastada pela multidão, não conseguia parar, nem sair dali, já estava entrando em desespero, quando ouvi uma voz forte, clara e ao mesmo tempo tranquilizante, parecia que vinha do meu coração, pois vencia todo o estardalhaço da música e conversas. Recuperei o ânimo, me senti mais leve. Já não precisava fazer um esforço tremendo para acompanhar os demais. Então percebi que seguia de mãos dadas com o Tempo, este jovem senhor das mil faces. Diante de minhas infinitas dúvidas e temores, ele respondeu:

"Ana, como ousa, sendo ainda tão nova neste Mundo tão antigo, perder as esperanças? Eu, aquele que nasceu com o Universo vi ideais de vidas inteiras nascerem, se tornarem castelos e logo depois desabarem... vi bons sofrendo e cruéis sendo aplaudidos de pé... e nem por isso desisto da luta, da caminhada. Me culpam por todos os males da humanidade, pois mesmo que eu ame as mais puras e generosas pessoas, não posso ajudá-las como gostaria. É minha sina, marchar sempre no mesmo compasso, não posso parar nem correr para salvar um amigo. Pensa que não sofro? Mas é a lei da Vida, o Destino de todo homem é livre, é dele o arbítrio. E muitos ainda escolhem o pior lado da existência. Mesmo assim nunca perdi a esperança na raça humana."

E continuou:

"Vê todos esses sábios e guerreiros que me seguem felizes? Um dia me procuraram como você, desesperançados. E como estou fazendo com você, fiz com eles. Sou um grande contador de histórias, amo quem me ouve, pois sei que deseja evoluir, aprender. Mas não se engane, se há uma coisa que não suporto é ser previsível. Como um bom professor eu ensino a mesma matéria várias vezes, com paciência, mas a prova é sempre uma surpresa."

Então resolvi perguntar:

"Quem são seus alunos favoritos?"

O Tempo então riu e falou:

"Bem, não posso ter preferências. Mas tenho muito apreço pelos sonhadores e artistas, pois se empenham de corpo e alma em me compreender. Não caem diante de mim, pois não são escravos, nem fecham os olhos (muito menos são covardes). Além disso, tenho um defeito, sou vaidoso, gosto de ser contado em verso e prosa. Nossa! Quantas homenagens já recebi, não esqueço nenhuma. Tenho uma ótima memória, como sabe! Acho até graça, quando eles estão dormindo e passo sussurrando uma idéia em seus ouvidos. Correm para escrever, pintar, lutar, etc. Sabem que não me detenho e que se não me dão atenção, vou atrás de almas mais atentas e dispostas. Como recompensa ofereço aos meus amigos um presente raro e precioso, a eternidade. Levo eles, suas obras e pensamentos para todo lugar e espalho seus nomes pelos Séculos."

Notei as belas paisagens que se descortinavam diante de nossos olhos, lugares que sempre amei, sempre quis conhecer, estava maravilhada, queria parar para apreciar melhor mas não era possível. O Tempo a todo instante me alertava:

"Agora não! Terá outras oportunidades para descobrir tudo que deseja, voltará outras vezes. Afinal, vocês artistas sempre me vencem, me superam e desafiam, pertencem a todas as épocas. O que a Ciência tenta até hoje, vocês já conseguem a muito tempo, alcançar qualquer lugar no Futuro ou no Passado. Mas agora, você vem comigo para sua época atual, pois tenho uma tarefa urgente para você."

Percebi então ao meu redor uma energia positiva, confortante. Senti que o meu espírito se afastava daquele mundo, pensava nos heróis e amigos do passado, queria ficar com eles, mas logo entendi que esta opção estava fora de questão, por isso fixei o máximo que pude aquelas lindas imagens em minha memória e voltei à realidade.

Acordei num rompante, senti meu rosto dormente e frio como quando viajamos de ônibus com a janela aberta. Uma doce mensagem chegou ao meu coração, era a voz de Tempo: "Faça a sua parte, faça o que sabe fazer. Você não pode ficar no Passado, pois ainda deve construir o seu futuro. Mas quem disse que seus amigos de antigamente não ficarão com você? Pense bem, eles já fizeram a História deles."

Uma poderosa inspiração se apossou de mim, peguei o caderno e comecei a escrever.


Imagem: "Scarlet", óleo sobre tela criada em 2009 por minha irmã, Patrícia Lettiere, artista plástica e escritora.


Ana Lettiere

6 comentários:

  1. Você escreve bem demaisssss!!!! Mais uma vez, parabéns pelos seus escritos e pelo Blog. Adorei. Um abraço da amiga Catucha.

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  2. Muito obrigada por suas belas e gentis palavras,amiga.Volte quantas vezes quiser,será sempre muito bem vinda.Abraços!!!

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  3. Ana,
    Como prometido vim visitar sua ''casa''. Não deixe nunca de escrever.O tempo lhe trará tudo o que você almejar. Não faça, portanto, do tempo, um tempo oco, sem cor, odor ou som. E que um dia não sinta raiva de ter perdido o seu tempo... Temos muito a esperar do seu talento.
    Parabéns ao seu pai pela sua profissão que admiro muito. Tenho uma filha na Belgica que para além de pintora é também ''Chefe'' .
    Um abraço
    Vera Lucia

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  4. Muito obrigada amiga,por tão belo e emocionante comentário.Obrigada pelos elogios ao meu pai(ele também ficou muito feliz!).Você é um exemplo para todos que trilham o caminho das letras.Abraços!!!

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  5. Quê fôlego! Como é difícil escrever bem assim, sem deixar cair o ritmo da narrativa. Você tem as chaves. Você tem o dom. Vá em frente. Escreva. Escreva sempre! Pra que a gente sempre possa ler textos bacanas como esse.
    Parabéns!

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  6. Oi!!!Obrigada pela visita e gentis palavras de incentivo.Esse é o melhor elogio que quem escreve pode receber,saber que seu texto é agradável,não "cansa"o leitor.
    Sou fã de seus escritos.Parabéns por seu talento,tenho certeza de que alcançará todos os seus sonhos,pois é um artista de palavras muito iluminadas por sua força interior.
    Muita paz e sucesso sempre em sua caminhada!Abraços!!!

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